31 de março de 2014

MARÉ VERMELHA














     A polícia ocupou no domingo, sem disparar nenhum tiro, o Complexo da Maré. É o que diz a imprensa.
Sem nenhum tiro disparado, só por acaso, morreram duas pessoas. A mãe de um dos mortos declara : eu podia esperar que isso acontecesse em qualquer dia, menos hoje.
A imprensa e o Brasil em geral lembram os cinqüenta anos que se seguiram à ditadura, na qual muitos não acreditaram e outros nem tomaram conhecimento, a não ser que tivessem um membro da família perseguido ou desaparecido. Pra frente Brasil. 
É  preciso saber tudo, dizem todos, 50 anos depois. Aí estão os presos e torturados que sobraram, suas lembranças marcadas no corpo e na alma e os caminhos que conseguiram refazer com suas famílias. 
Também estão aí, soltos e pagos pelo Estado, os torturadores e mandantes, resquícios de uma lei própria de brasileiros: uma lei cordial, baseada no diplomático princípio de "vamos botar uma pedra em cima disso". 

A tortura, no entanto, não acabou. Repete-se agora, neste momento em que você me lê, graças à comunicação via celulares, em qualquer lugar, preferencialmente nas favelas onde não há comissões e tampouco verdades. O tratamento bestial da polícia dado aos pobres é igual ao dos torturadores da época dado aos resistentes. Pior, porque aquela época já passou, e a de hoje está sendo vivida. A partir do "auto de resistência", o inocente, já culpado, pode morrer na viatura ou ser espancado em becos que só a polícia conhece. Mesmo com imagens que comprovam, os policiais seguem nas ruas e cometer atrocidades. 
Vão acompanhar o preso que roubou uma lata de atum ou o que portava dois baseados. Sem contar com os que são presos, sem flagrante e sem prova, só porque "parecem" com o suspeito.

A democracia de hoje permite que os fatos da ditadura militar venham à tona. Quem permitirá que a tortura prisional saia da clandestinidade? 

Na ditadura do capitalismo há sempre alguém que escravizar, e é evidente que tem muito mais sabor com sangue porque afinal, é disso que o povo gosta. 

O blindado da foto não é mais o das forças militares que assombraram o País há 50 anos. Agora eles, os blindados e demais artefatos de guerra, totalmente modernizados, apontam para um público-alvo: os pobres nas favelas.

Às vezes tenho vontade de anexar a foto dos mortos pela polícia, uma galeria de vítimas da ditadura da repressão. Mas parece que em todos os tempos há informações ultra- secretas a que não temos acesso. Talvez daqui a 50 anos, quem sabe.





* este blog não segue as normas do acordo ortográfico



28 de março de 2014

DO CAOS À LAMA

"A  frivolidade desarma moralmente uma cultura descrente."
(Mario Vargas Llosa)


Uma coisa que muito me espanta e deprime é ver tantos artistas famosos venderem nome, imagem e honra por necessidade (ou amor?) ao dinheiro. Todos estão com saúde, com a vida ganha, no auge de suas carreiras (ou não?) e ainda precisam fazer propaganda Será que, serenamente, em suas casas, se dão conta do que estão fazendo? Não acreditam no poder da propaganda? Ou estarão apenas querendo nos dizer que o fim é o começo?Estarão sendo tão mal pagos, os artistas famosos, que precisem de um bico? O assunto vem porque li recentemente, por indicação de Elida Escaciota, a quem agradeço, o livro de Mario Vargas Llosa, A civilização do espetáculo, publicado no ano passado. Sempre gostei de Vargas Llosa, e o fato de ser "de direita" como chamávamos então, não perturbou em nada a sua indiscutível obra.Passados os anos, leio este livro o me pergunto. O que há de errado? Por que eu concordo com tantas coisas que diz sobre a cultura - que é disso de que trata o livro. Acaso terei me passado para o outro lado e nem sei? Mas imagino que não, que é apenas o tempo que faz com que revisemos alguns conceitos que tínhamos como certos em outra época. Além disso, um grande escritor cuja obra sempre versou sobre diferenças de casta e raças e exploração não pode ser tão inimigo da humanidade. O que escreve sobre cultura, erotismo, religião e arte me faz voltar a um outro tempo em que pensávamos a cultura como algo sempre a alcançar, mas não na invenção de coisas sem pé nem cabeça que as artes, e depois os espetáculos, acabaram de extinguir nesse século. Nunca imaginei que os artistas, que em outros tempos foram arautos da liberdade, que puxaram as grandes frentes de luta, hoje estejam com a cabeça enfiada entre os dentes do monstro publicitário.Isso significa dizer que tudo está acabado. Que dessa sociedade nada mais se espere porque nada mais virá. 
Só os caranguejos são felizes na lama.

* este blog não segue as normas do acordo ortográfico.

10 de março de 2014

EU TAMBÉM QUERO SABER


Se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir. (George Orwell)

Por que chamar de vicio o que é do gosto? As pessoas costumam dizer: sou viciada em filmes de ação, outras em charutos, diamantes, melancia, fotografia, sexo, ópera ou bingo, para dar apenas alguns exemplos. O vício denomina algo sem o que, pensamos, não podemos viver. Podemos, é verdade, mas do profundo da nossa liberdade (*dentro de nós há uma coisa que não tem nome) elegemos o que nos dá prazer. E como prazer é o que mais queremos nessa vida, aí está - do prazer ao vício, mas um vício muito diferente do que domina a vontade e escraviza corpo e consciência.
Entretanto há prazeres permitidos e não permitidos. As proibições seguem critérios obscuros que não podem ser discutidos porque alguém fez uma lei com o apoio de muitos (sempre a mando de outro alguém) para facilitar a vida e o lucro de alguns, que é para isso que as leis são feitas. 
Os vícios não permitidos carregam consigo uma carga de transgressão e culpa, mas nem por isso deixam de ser curtidos, é óbvio. O desejo de transgressão aumenta com a repressão, todo o mundo já sabe e se não sabe é porque já morreu. Até as criancinhas se dão conta do que os adultos não querem que elas façam e é justamente isso que elas passam a querer. Se ninguém fala, a criança não se interessa, mas se alguém diz "isso aí não pode", ali é que ela irá, mais cedo ou mais tarde.
Mas não imaginem coisas. Do que eu ia falar mesmo era do vício que eu tenho de ler jornal. Já tinha largado, por falta de jornal que preste, mas tive uma recaída da qual procurarei me recuperar. Leio, por isso, o jornal aquele, o de sempre, o parcial e capcioso O Globo. Tenho observado que aumenta a aceitação, e até a simpatia dos articulistas em relação à legalização das drogas, e isso significa também dizer que mudou a "linha editorial" do jornal. No jornal de domingo, a entrevista com Jose Mujica mostrou como age um presidente que quer, de fato, corrigir os erros de uma política fracassada. 
Infelizmente, no Brasil não se pensa em corrigir os erros, mas em reiterá-los. Por mais que a imprensa mundial divulgue as mudanças na legislação de países ou estados, como no caso dos EUA, ou mesmo da ONU, que é a última a fazer qualquer coisa, reconhecendo que o modelo repressivo não deu certo, o Brasil e principalmente o Rio de Janeiro, insistem na proibição e na repressão. Por que? A quem interessa manter o tráfico? A quem interessa manter sob armas as comunidades dominadas, ora pelo tráfico, ora pela polícia? O que justifica essa resistência às novas idéias? Quem se importa com os policiais mortos? Quem se importa com a quantidade de jovens de 15 a 25 anos mortos ou presos nessa guerra suja? É assim que se busca a paz?
Isso tudo eu queria saber.


* José Saramago


5 de março de 2014

SONHO DE CARNAVAL



Foto: Joel Santos


Ainda bem que não terminou o Carnaval (no Rio só termina no domingo).
Não digo isso porque seja louca por Carnaval, embora já tenha gostado de verdade. Não é para menos. Nasci numa terça-feira de Carnaval e cresci numa cidade onde a festa era boa demais. Hoje mudou tudo, mas acho que o Carnaval ainda mais do que eu.

Juntando o gosto pelo carnaval com a necessidade de defender uma causa que é política, há quatro anos vou ao bloco do Planta na Mente, que acontece na Lapa, na rua Joaquim Silva, e neste ano mudou (piorando) para os Arcos da Lapa. Fora os interessados, só havia vendedores ambulantes. E poucos. 

A Lapa, numa quarta-feira de cinzas, é pior do que o submundo que normalmente é. Na quarta-feira está tudo acabado. Ali estão as sobras. Não só as do lixo, de que tanto reclamam, mas as humanas, para as quais se faz vista grossa, as vidas sujas ofuscadas pelos bares burgueses, que ocupam as ruas de trás, os becos, os prédios abandonados onde se mistura todo o tipo de miséria.

Fantasia eu já tinha. Das músicas, pensei que o Planta iria incorporar a Marchinha da Maconha, de autoria de Henrique Cazes, que vocês podem conferir:
Ouça a Marchinha aqui.  -  uma jóia entre sambas mal enredados e marchinhas mais velhas do que eu.
A Banda Erva, composta de alguns bons e bem intencionados músicos, não é de super homens, e portanto não pode segurar a animação por muito tempo. Reggae e jazz eram bem-vindos para o descanso.
Mas o bloco cresceu, com certeza. Não na proporção de defensores ou debatedores de mesas-redondas, mas de povo mesmo, que pouco a pouco vai se incorporando, vai perdendo a vergonha de reivindicar um direito que é seu.
O pessoal estava animado. Acredita até que 2014 é o ano da legalização. E vocês sabem que a gente acredita no que quer. Eu acredito na luta pela liberdade, que nunca, nunca termina, e nas cores com que se pode pintar a vida sem prozac ou projac.
Nem a polícia deu bola para a bloco. Eram poucos os policiais e ficaram de longe. Na real, nem se mexeram. Deram uma trégua aos brincantes que estavam mais entusiasmados com o fato de poderem fumar livremente do que com o Carnaval, propriamente, apesar de que uma coisa dependia da outra.
Digamos que foi, portanto, uma licença poética.

A foto é do Joel, mas o fundo - é o sonho. Um sonho verde, da mesma cor da esperança.



1 de março de 2014

À VIVIANE, COM CARINHO


Querida Viviane, confesso que dois sentimentos me assaltaram na quinta-feira pela manhã, ao ler o jornal. É que me chamou a atenção a tua entrevista. O primeiro foi um sentimento chão, uma coisa de bem-estar e alegria - Viviane, a poeta original, a voz inigualável, sedução à flor da pele é, por tudo isso, leitura obrigatória.
O segundo foi um atordoamento. O que dizia a inspirada Viviane Mosé? A matéria terá sido tão mal editada que levasse a esse conjunto de frases amontoadas, tanto na forma como no sentido? Seria possível que estivesse falando sobre assunto de tamanha importância, como é a violência nas cidades, de maneira tão superficial, a poeta que tanto admiro?
Ali estava ela, belíssima. Difícil de acreditar.

Levei o jornal a uma amiga. Pedi que lesse para me certificar de que havia razão para o espanto. Ela confirmou e lembrou um verso de Viviane:

"muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos ".

Tem razão, Viviane. Esses poemas presos vão pouco a pouco se transformando numa doença crônica que assolou nossa sociedade: a violência. Como curar a violência que nos corrói? Com mais violência, armas mais potentes, feitas para a guerra, como os robocops, que ora nos apresentam?

No caso dos manifestantes, por que a polícia não agiu logo? Por que esperava que os black blocs começassem a quebrar, para então sair batendo não importa em quem?
Se a aprovação popular ao movimento de início foi tão grande (parecia que as pessoas lavavam a alma), em seguida decaiu em virtude do medo. Quem quer morrer, ser preso, perder um olho, ser derrubado na rua, inalar gás de pimenta? As pessoas já passam tanto trabalho. Ainda vão arranjar problemas? As manifestações populares, no Brasil cordial, não levam a tanto, em comparação com o que se vê pelo mundo.

Considero absolutamente ingênuo dizer que a polícia não estava interessada no caos. Qualquer cidadão poderia ver, da calçada ou de uma janela, o momento em que os blacks blocs iam agir. Por que não os impedia? Em alguns momentos havia 600, 700 policiais para conter 50 mascarados? Por que ficavam cozinhando ao máximo as provocações? Por que não os tiravam de circulação antes da coisa eclodir? Recolhe, leva para averiguações, pronto. Mas não. E de repente liberava todo o ódio represado nas aulinhas de lavagem cerebral. É humano ensinar a bater? Por que não foram a fundo para identificar pessoas que não eram manifestantes, mas que estavam em lugares estratégicos, fomentando a fúria? 

"Morreu uma policial militar de 22 anos da UPP e não houve uma única manifestação por ela", observa Viviane. E por que haveria? Por conta das propagandas institucionais que mostram jovens sorridentes satisfeitos com a "liberdade" trazida pelas UPPs? 
Policiais morrem, é verdade. Mas estão a serviço. Conhecem os riscos, aceitaram os treinamentos, submeteram-se a regras. E as regras quais são? Criminalizar os pobres, quase sempre negros, prendê-los, achacá-los. Logo, por que fazer manifestações por policiais mortos, se eles escolheram defender a injustiça para com os pobres? Além disso, eles também perderam com as UPPs. Pergunte ao Capitão Nascimento.
Jornalistas também morrem ao fazer cobertura de conflitos. Também o cinegrafista atingido e morto estava no exercício de uma função que (ele sabia) oferece riscos. Desde que há cobertura de guerra os jornalistas morrem. Poderiam não ir, mas vão. É um chamado da profissão.

Como relação às UPPs, por que as comunidades precisam delas? Por causa do tráfico de drogas, é a desculpa. Para proteger os moradores dos traficantes. E protegem? Enquanto houver proibição às drogas haverá traficantes, tiroteios e policiais corruptos. E as guerras (todas) são promovidas não só pelos negociantes das substâncias proibidas, mas principalmente pelos fabricantes de armas. Quanto maior é o perigo, maior a necessidade de armas, cada vez mais caras e letais. 

"Como sociedade, não se pode deixar a violência como está". Não Viviane, você não falou isso, diga que não, por favor. Diga que foi torturada, que ameaçaram cortar os seus gerânios. Eu vou aceitar. Essa frase é muito feia. Como conter a violência se a política do governo é justamente investir na violência? Não podemos deixar a violência como está mas devemos dar créditos à polícia? Clemência, é o que você pede?

É "uma pena enfraquecer as UPPs"? Talvez já tenham nascido enfraquecidas porque chegaram como invasoras. Como respeitar uma instituição que é responsável por tantas mortes? Como conviver com aqueles que invadem as casas, humilham, roubam, abrem as mochilas, as bolsas, debocham da população submetida? Não é a mesma coisa que dar de cara com o torturador, todos os dias? Na favela não existe Comissão da Verdade. A verdade tem que ser engolida, sem água, num soluço. 
Não existe paz armada, Viviane. Isso se chama dominação.
Queremos menos violência? Busquemos menos intromissão do Estado na nossa vida privada. Tentemos nos curar das políticas proibicionistas, da polícia incapaz, dos preconceitos raciais. 

Quanto à imagem já tão gasta do Brasil como o gigante adormecido que talvez acorde porque "a educação básica vem  melhorando", é de um otimismo pueril. A educação não vem melhorando. Os resultados estão aí, na falta de consciência crítica, na  precariedade da linguagem, na falta de motivação, na falta de condições para fazer escolhas, em que pesem todos os esforços, sacrifícios e protestos dos professores, dos quais saem sempre derrotados ?  

Reafirmo, no entanto, minha admiração pela poeta. Acho que foi um mau momento, uma entrevista infeliz. Acontece. Fiquemos com o que é maior em Viviane Mosé:

muitas doenças que as pessoas têm
são poemas presos
abcessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão

mesmo os cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema 

pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra seca
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima


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