"como eu fui, simplificado."
Não sei se era verdade que Álvaro Mendes não se reconhecia poeta. A vaidade, que se confunde às vezes com o pudor, atinge regiões tão remotas que passamos a vida a pensar que não existe. Recebeu, ainda jovem, o conselho de desistir da poesia (os levianos pareceres acadêmicos). Isso talvez o tenha levado a hesitar tanto pela publicação do seu livro Íris breve pela 7Letras em 1999, quando o autor tinha 57 anos.
A publicação tardia talvez se deva também a uma extrema exigência, ao cortar, excluir, substituir obsessivamente até o resultado desejado - o que é quase impossível para os perfeccionistas.
Ao ler pela primeira vez os poemas do livro confesso que não alcancei aquelas paisagens lunares e a linguagem demasiado erudita. Mas ele também não gostava de ser chamado erudito. "Erudito era Augusto Meyer", dizia. Fiquei impressionada foi com a novidade, a pureza da pedra.
Ivan Junqueira, autor do prefácio de Íris breve afirma com propriedade:
"Duas coisas chamam de pronto a atenção na leitura de Íris breve, livro com que tardiamente se estréia o poeta Álvaro Mendes, que de estreante só tem mesmo a pudicícia de se haver mantido quase inédito até os 57 anos: seu lirismo seco e austero, de cunho não raro reflexivo, e sua intensa fermentação experimental - ou mesmo subversiva - no que toca à trama vocabular e à estrutura sintática (...) O experimentalismo a que se consagra Álvaro Mendes é absolutamente pessoal e, mais do que isso, solitário, o que faz dele um epígono e um prógono de si próprio. "
"Duas coisas chamam de pronto a atenção na leitura de Íris breve, livro com que tardiamente se estréia o poeta Álvaro Mendes, que de estreante só tem mesmo a pudicícia de se haver mantido quase inédito até os 57 anos: seu lirismo seco e austero, de cunho não raro reflexivo, e sua intensa fermentação experimental - ou mesmo subversiva - no que toca à trama vocabular e à estrutura sintática (...) O experimentalismo a que se consagra Álvaro Mendes é absolutamente pessoal e, mais do que isso, solitário, o que faz dele um epígono e um prógono de si próprio. "
Jornalista de profissão, do tempo em que havia jornais de verdade - Álvaro Mendes aposentou-se, e talvez tenha aposentado a prática do texto perfeito na imprensa.
Deixou inéditos dois livros: um de poemas, Sardônica, e Alvarozes - uma prosa espessa equivalente ao Ulysses de Joyce. Podem pensar que exagero, mas sigo a intuição. O século é XXI, o país é o Brasil. Qual é a esperança? Quem publicará obra de tal porte de um autor desconhecido? Ou então, quem sabe, agora morto, resolvam descobri-lo? Não seria raro.
Deixo-os com essas lâminas, estilhas, centelhas de um poeta que viveu para a poesia, amante e estudioso de Valéry, Pessoa, Augusto Meyer, Camilo Pessanha, Rosalia de Castro, Eugenio Montale. Em que banco de dados ficarão depositados os conhecimentos e a sensibilidade do artista?
poemas são fermentações
falhas de fornicação
tenebrosas associações
- devoradoras de
palavras.
são
altas fábricas de prata
forjas de cal
rubros!
violentos sais verbais.
cães
de guerra em ação
de guarda
são
ações
açores de guerra em terra
aviões de caça
falcões de palavras
descamisadas em vôo-
-cego em guerra
de morcego.
poemas são
fabricações violentas
de olho em greve morcegam
infravermelho-ávido
têm olho grave
e são rei.
contudo não trabalham
demarcam
golfos vermelhos
teias de hera em letras
das pernas às pedras
com patas de tiralinhas.
(...)
poemas são
fagulhas sinistras
coices brutos no cio
pavios.
poemas cantam
de nada.
nom sabeis concual prazer m´entrego à idéia que preçede a criaçom.
levanto cedo, logo m´esfrego, entre la lampe et le soleil
carece choisir a linguagem adequada nem pouco nem excessivo
la mesure le point de jour.
nã sabedes quã labor dá um pícolo anúncio fulgurante in página
cual jóia:
la mesure
le point du jour
espingarda punho de seda gotas de chumbo facetadas
sacrifício ao deus trovão.
depois... nenhum clarim
tambor / tambor
sinais
incapaz de escolher, paralisado
os sinais me comovem.
em fileira cerrada me prometem
o mundo
o mundo mudo
- lábios, seios, olhos, um fragmento
de música detritos, sonhos, ossos
oblíquos cintilando junto ao mar.
os sinais me exsperam: asas-
-pupilas no meu quarto.
o espaço que não tive eles povoam
de sombra resumida mas solícita
misturando secura e pesadelo:
calendário em vez do tempo
os dias sem distância
uma paisagem uma rocha um grito
filtrados pela mesma gelosia
...
.