Há um mês morreu Ivan Junqueira. Como assim, morreu? Se na segunda-feira mesmo o vi, com Antonio Carlos Secchin e Alexei Bueno, passeando em Copacabana, falando do tempo em que vivem e da poesia?
Não é todo o dia que vemos um trio desse quilate assim, misturado ao povo. Só podia mesmo ser um documentário. Mesmo assim, gostei de vê-lo, gostei do entusiasmo, ainda que contido, com que sempre fala em poesia. Gosto da sua voz cavernosa falando poemas, uma voz que parece vir da tumba; da extrema preocupação com a morte, com o mistério da morte que ele, um ateu convicto, não reconhecia.
Gosto de ver como defende a sua devoção à poesia metrificada que, ao contrário do que dizem os que a rechaçam, o faz sentir-se absolutamente livre, sem que o incomodem os limites do metro.
Ivan Junqueira, jornalista de profissão, poeta, crítico e tradutor foi uma inteligência brilhante que passou por aqui sem receber o reconhecimento (e mesmo o conhecimento) devidos aos poetas de vulto, o que é comum.
Depois que entrou para a Academia IJ ficou ainda mais sério, mais sisudo, mas seus companheiros sempre o acharam uma ótima companhia, e engraçada, com gosto pelas tiradas surpreendentes.
A poesia não, a poesia é tão exageradamente soturna que em algum momento pode-se até achar (eu, pelo menos, acho, algumas vezes) uma certa graça na maneira como penetra nos temas mais íntimos e sombrios conservando uma postura intangível.
Muito mais coisas há que dizer sobre o poeta, mas isso o documentário já fez, ainda que tenha sido curto para tanta vida e obra.
Até mais, Ivan Junqueira. E que te encontremos outras vezes. Nos livros, na memória, na calçada ou na tela da tv, e tua poesia estará ainda mais viva porque a morte está sempre em ação, esta que tanto te consumiu e da qual agora estás livre, assim como estás livre da vida, que tantas dúvidas e desassossego te trouxe, mesmo que tenhas vivido também alegrias. Para um poeta, viver é sempre um ato extremado.
ELEGIA ÍNTIMA
Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada.
Um relógio preto gotejava barulho.
Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.
Minha mãe chorando no fundo da noite
apunhalou o sono de Deus.
(do livro Os mortos, 1964)
MORRER
Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;
é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;
é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;
é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir
é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;
é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.
(do livro O grifo, 1987)
Esse punhado de ossos
a Moacyr Félix
Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esquilo e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.
(do livro A sagração dos ossos, 1994)