Condição da mulher, por Helena Ortiz
Discute-se, no
Brasil, onde o aborto é proibido, o estupro conjugal. Uma coisa está ligada à
outra, é claro, porque desses estupros conjugais também nascem crianças.
Há países que
já superaram o estágio primitivo, que pune a mulher que aborta. Mas aqui não.
Aqui a lucidez não aportou. Pode-se calcular, portanto, a multidão de mulheres
que abortam, ainda correndo o risco de serem presas, de terem seus filhos na
prisão, vivendo ali a primeira infância. É um risco.
Por outro lado, tem a sorte.
E a fé. Que tudo saia bem, que Deus me perdoe, mas o que é que eu posso fazer? Deus
está vendo a minha situação. Ele vai me perdoar.
E lá se vai o
quase bebê. Sofre menos do que sofreria se vivesse, o pobrezinho, de mãe pária,
de pátria cruel.
Haverá, para
cada uma, um porto que acolherá, na solidão absoluta, a dor do aborto?
Não, não há. É
uma dor funda que se divide em duas: abortar ou não abortar. Tudo é profundo e
triste. Tudo faz parte de uma política dominadora e ridiculamente estipulada por
igrejas e governos – todos sexistas.
Todavia, a mãe
também tem uma vida. Ela não tem direito de opinar sobre si mesma, ela a
estuprada, ela a vítima?
A sociedade
masculina repete cinicamente que as mulheres devem ser protegidas porque sem
elas, a família, a sociedade, os valores morais, etc. É mentira. Desprezam-nas.
Riem delas, das dedicadas esposas. Mesmo que algumas mulheres ascendam a postos
importantes exclusivos dos homens isto será, inegavelmente, visto como concessão.
Aceitam-nas porque nas ruas elas estão gritando, e estudando mais. Aceitam-na.
Mas na sua ausência a chamarão “puta!” e “vagabunda!”. E o filho será sempre o
da puta que o pariu, nunca do puto que fugiu.
A criança deve
nascer, é o que dizem a Igreja e os moralistas de sempre. Não importa sob que
condições emocionais, não importa que a mãe não tenha onde morar, nem tenha
alimento para dar ao filho ou que o pai tenha ido embora. Não importa que à mãe
não reste muita coisa a não ser a escravidão.
A proibição do
aborto é apenas uma parte da farsa que não sai de cartaz: proteção à vida.
Esquecem os legisladores que são sempre as mulheres (elas também significam
vidas) que enfrentam as consequências da sua condição de grávida e abandonada.
Elas formam uma multidão desorganizada que suporta submissão e martírio a que
são obrigadas a bem de “pertencerem” à sociedade. Só que elas não pertencem à
sociedade. Elas nem ao menos pertencem a si mesmas, se não podem decidir sobre
os rumos da sua vida.
Em que súbito
momento, lapso, hora má, com espanto ou horror, cada menina que nasce ou já
nasceu, desde os tempos em seus inícios, terá entendido que a sociedade ainda a classifica como uma pessoa menor,
mesmo depois das retratações da ciência?
Cada menina
nascida viveu, inapelavelmente, o instante em que afinal descobriu: ainda se
acredita que a mulher existe para servir.
Soa duro, soa
triste, depois da grande ilusão do amor, das promessas, dos planos de casamento,
do filme único e inesquecível que todas, tolamente, querem protagonizar.
Mas depois,
passada a festa, as mulheres se defrontam com a sua “missão”: servir, cuidando,
cozinhando e abrindo as pernas. A qualquer hora, à vontade do dono. Parece
antigo? Nada é tão atual do que os segredos entre quatro paredes. Nada é tão
sofrido do que suportar um invasor e esperar, passivamente, entre lágrimas, não
um orgasmo, não uma maravilha do amor, apenas um estertor, que para a mulher é
o alívio. Temporário, é certo, mas um alívio.
O homem
vira-se para o outro lado e ronca, como o bicho que é. A mulher respira. Acabou
a tortura. Sobrou-lhe esperma entre as pernas, dentro, fora de si. A angústia é
toda. Engole a raiva e a humilhação. Precisa levantar. Precisa lavar-se. Daqui
a pouco é manhã. Precisa trabalhar. Deve
seguir. Não pode, não deve protestar. Pode ser pior. Pode ser muito pior. E as
crianças. Por que as crianças vêm para juntar inapelavelmente o que nunca
deveria estar junto? Castigo sobre castigo. Nascimento, menstruação, estupro, parto,
feridas sobre feridas. Sempre o sangue nos acontecimentos.
Pobre menina
nascida para o mundo. Agora já sabe. Agora já sofre. Esta é a sua missão. Ser
de alguém, pertencer a alguém. Poderá falar, sair, pensar ou vestir-se como
quiser desde que o dono permita. Para
tanto só é preciso obedecer. Para tanto ela só precisa servir. Para ele basta
ser vil. Eis a base da harmonia do casal.
A mulher não
pertence à classe nenhuma, nem ao menos é classificável, como os infelizes dalits, na Índia, porque daqueles o
destino está definido. No mundo das mulheres, não. Tudo é secreto, ela é
negociada, vendida, comprada para depois chorar sobre os escombros dos sonhos: o
casamento. Uma armadilha. Uma verdade mentirosa. Mas daí a saber, daí a rejeitar
o amor, a criação de uma família (é assim que falam as mães das penitentes
chamadas noivas) ... Eis a propaganda enganosa. Só que é tarde. Demasiado
tarde. Agora é engolir em seco, arrumar o cabelo, pegar as crianças e ir em
frente.
Estranha
espécie: a mulher procria e o homem é o seu predador.
As mulheres,
no entanto, seguem na luta. E essa é uma luta com muitas mortes. No Brasil, 13
mulheres são mortas por dia. Outras tantas apenas apanham sistematicamente, até
se tornarem uma das 13 do outro dia. Sem chance, sem saída.
As ações
governamentais que pretendem conter essa violência não são suficientes nem
sinceras. O sistema está impregnado de preconceito. Não só o trabalho, mas a
palavra da mulher vale menos.
Somente agora,
nos Estados Unidos e na Islândia, discute-se a obrigatoriedade de salários
iguais entre homens e mulheres. Essa diferença é uma desonra, uma ofensa, um
deboche. Esta lei não está escrita. É fruto apenas de um “costume” graças ao
qual as empresas se locupletam ao mesmo tempo em que mostram às mulheres “o seu
lugar”.
Alguém já viu
empenho de homens no sentido de que suas colegas ganhem o mesmo que eles? Entra
na pauta? Nem se cogita. As questões das mulheres sempre são secundárias. Isso
é histórico.
Isso não
acontece apenas em sociedades que castigam mulheres com base na religião e na
fúria. Também nas sociedades ocidentais, onde, aparentemente, as mulheres
alcançaram alguns direitos. Quais direitos? O direito ao assédio. O direito de
usar terno. O direito de não ter família, de estar “disponível” como os homens
para os negócios da hora. O direito à guerra. O direito a se tornar sexista. O
direito à vingança através dos mesmos métodos? O que é
pior, um homem ou uma mulher sexista?
Digo
aparentemente porque estou falando de mulheres que estudaram, que alcançaram
postos desde sempre guardados para os homens. Digo aparentemente porque ao
serem aceitas também precisam se sujeitar aos gracejos, às mãos sujas, à
certeza de que se ela não estiver presente será chamada “aquela vaca”, “a
vadia”. A conquista de direitos acontece através do rompimento com os valores
sexistas.
As ações
governamentais que pretendem conter essa violência não são suficientes nem
sinceras. Elas são parte do sistema que acha bom manter a mulher “no seu
lugar”. Que não ousem. Eles logo se encarregam de denegri-la.
A outra
dificuldade é que homens e mulheres não querem a mesma coisa. Elas querem paz,
eles querem guerra. Elas querem amor, eles querem vitória. Elas querem ser
livres. Eles não sabem o que querem. Não fosse assim, o mundo não estaria em
máxima combustão.
A luta é
permanente. De cada uma de nós deve brotar a coragem de pôr fim à dominação. É
possível que esta mudança não seja de toda a sociedade, mas a libertação
individual estará pesando nessa busca.
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