20 de março de 2011

MATAR E JEJUAR




"Só amadurecem aqueles que experimentam a imensa amplidão da sua vulnerabilidade"- Rose Marie Muraro


Vejo com tristeza que abandono o ofício para o qual pensei ter sido escolhida, com o qual me alimento e resisto. Vou me tornando, creio, uma ex-escritora. Todos passam por isso, me dizem os escritores, mas não tenho consolo. Até mesmo a crônica, que é tão parceira, abandonei, ou me abandonou. Fui ver, a última postagem era de 28 de fevereiro. Estamos em 20 de março. Fora isso, nenhum poema que salte aos olhos, nenhum sonho que se revele poema.
Estarei endurecida, não me sensibilizo com mais nada, abalada com tanta realidade? Já fui mais forte, confesso.

Vou contar uma coisa aparentemente corriqueira, que me desorientou.
Recebi de uma senhora, por email, um texto (sem citar a fonte) que falava em Singapura. Eu, de Cingapura, só sabia que era um dos Tigres Asiáticos, e com C, mas não. Agora é com S por conta de um tratado imbecil, como são os tratados que modificam o idioma sem nenhuma necessidade.
Dizia o informe que em Cingapura (resisto) um militar com mão de ferro resolveu os problemas do país matando os prisioneiros (deixou apenas 50) assim como mandou matar ou banir os drogados. Que agora Cingapura é um país seguríssimo, mais do que “os arrrogantes Estados Unidos”. Todos os que entrarem no país sabem que drogas resultam em MORTE (assim está no carimbo).
Em compensação, em Cingapura as mulheres são 100% protegidas e se você cumprir corretamente as regras de trânsito o governo lhe paga prêmios em dinheiro. A política é de extirpar o câncer. Qualquer câncer. É da sua família? Desculpe, mas é a política.
Pois bem. Na mesma semana quase, recebi da mesma pessoa uma mensagem sobre Jejum na Quaresma que dizia:
“Jejua (abstém-te) de julgar os outros e descobre Jesus Cristo que vive neles.
... Jejua de palavras críticas, mordazes, e enche-te de frases que purifiquem
... Jejua de irritação, ódio e cólera e enche-te de mansidão e paciência.
... Jejua de rancores e enche-te de atitudes conciliadoras.
Se todos procedermos assim, o nosso dia-a-dia irá se inundando de paz, de amor e confiança”.

Ora, de que maneira poderemos inundar o mundo de paz e amor se a todo instante estamos matando um Jesus Cristo?
Se eu matasse algumas pessoas por quem não tenho nenhuma simpatia, feito alguns políticos em particular, financistas, policiais em geral, motoristas de táxi, o vizinho e “aquela lá” poderia viver depois na certeza de uma sociedade segura e tolerante? Mas até quando? E se resolverem matar os carecas? Ou os poetas?
Fico estarrecida em constatar que as pessoas fazem propaganda ideológica sem nem se dar conta, sem perceber o que lêem, sem entender o que se passa. Isso tudo depois de tanta história, velhas e novas guerras, tanta literatura.
Pessoas educadas e pretensamente cultas distribuem propaganda ideológica sem nenhuma responsabilidade, como se estivessem enviando apenas paisagens do sul da França.
Não lêem o que está escrito, não percebem o que não está, mas está incluído. Não fosse ela a propaganda – essa agente perniciosa do capitalismo.
Ninguém ignora que o preconceito – qualquer um – vem crescendo desde que inventaram o politicamente correto, que é a hipocrisia varrida para debaixo do tapete. Mas o que tivermos que fazer por pressão não nos modificará. A única coisa que modifica é a tomada de consciência de que o que fazemos contra a sociedade é também contra nós.
E isso tudo é muito difícil e perigoso. Frente ao noticiário cada vez mais violento perguntamos: como é possível isso?

É possível porque qualquer coisa pode detonar o ódio aprisionado.
Melhor não fazer jejum de ódio. Melhor senti-lo aos pouquinhos, liberá-lo todos os dias do que armazená-lo sob a capa de uma tolerância falsa até que um dia, invencível, ele se liberte. Enorme, bem nutrido, louco de sede, e inicie a matança.
...