27 de janeiro de 2015

MEDO DA SEGURANÇA



Respeito o Sr. José Maria Beltrame. Gosto de vê-lo e ouvi-lo. Ele tem aquele jeito de gaúcho que sabe o que quer, mas não tem paciência para o mundo que se apresenta, apesar dos seus esforços e das suas crenças. Precisa o tempo todo se conter. 
É um visionário, o Sr. Beltrame, e contra essa força ninguém pode. 
Às vezes parece que ele vai fazer uma grande denúncia, mas segura, pensando que a política que segue está certa. Sabe-se lá quem ensinou isso pra ele lá em Santa Maria, que até hoje ele tem aquela cara de inocente lidando com bandidos dos dois lados. Isso é coragem. E não tenho certeza, mas acho que realmente sofre com os desmandos da polícia.
Há que respeitar um homem que acredita no que faz. Nas últimas aparições públicas, no entanto, Beltrame já não estava tão seguro. Ficou enrolando, ele que sempre falou com tanta clareza. Acho que começou a tomar consciência da situação, tal qual o Capitão Nascimento, quando finalmente constatou o que se passava na polícia.

Evidente que as armas apreendidas por policiais nesse janeiro fatídico não foram compradas na loja com desconto. Alguém forneceu essas armas oficiais. E certamente não foi na fronteira. É ali mesmo, no nariz do Secretário, que se fazem os negócios. 
A maioria das favelas aguarda as UPPs, mas as UPPs já dão mostras de cansaço. E os bandidos gostam de diversificar.
Está difícil para o Secretário acreditar que esta não é a política adequada para a pacificação; que os Estados Unidos, que nos obrigam a essa repressão, estão dando risada com os dinheiros que estão ganhando com o plantio e a comercialização da maconha. E nós ainda estamos aqui, matando e morrendo por nada.
Não, claro que não fiquei com pena do Secretário. Também não sinto pena dos mortos, que se livraram mais cedo. Tenho pena das famílias, que choram uma vida em que apostavam.
E talvez sim, eu sinta pena (ou será espanto?) pelo fato do Sr. Secretário de Segurança somar a cada dia, na sua consciência, a co-autoria de uma política equivocada, as mortes nossas de cada dia.

E como se tudo isso não bastasse, a Secretaria ainda sofreu cortes no Orçamento. Pode ser que assim o Secretário pense numa saída. Que é apenas uma:
LEGALIZA!
Parece que não encontra eco a afirmação dos especialistas: a guerra ao tráfico fracassou. Vamos pensar em outra coisa.
Ou contar diariamente as vítimas.

...

8 de janeiro de 2015

HUMOR E INTOLERÂNCIA

Ventos de selvageria sopram de todos os lados. Ondas de calor que vêm da fúria dos fanáticos, perigosamente fervorosos que acham que o mais importante que têm a fazer é explodir aquilo de que não gostam. São seres escuros, que só olham numa direção, que só aceitam uma idéia. Que querem impor uma só crença
Foi-se o jornal que tinha em seus quadros os melhores humoristas da França, uma resistência que pensávamos imbatível. Foi-se um contingente de artistas, políticos, lúcidos apresentadores de verdades  que a grande imprensa não ousa. Imprensa é oposição, já dizia Millôr, o resto é armazém de secos e molhados. O jornal poderá se reerguer, quem sabe, mas é difícil, sobre os cadáveres dos que sustentavam. Os franceses devem estar perplexos. O mundo está perplexo.
Já não basta matarem em casa, os malucos religiosos avançam.
Guardo comigo o primeiro exemplar da revista "Grilo", que saiu em 1973 no Brasil, onde conheci o trabalho de Wolinski, Feiffer, Reiser, Robert Crumb e toda a galera que surgiu nos Estados Unidos nos anos 60, a partir da revista Zap, idealizada por Crumb. Para mim foi um deslumbramento ver aquele humor cáustico, com traços tão diferentes e criativos. Foi uma época de ouro dos quadrinhos.

O radicalismo traz em si esse mau humor crônico, essa impossibilidade de ver os outros lados de uma questão. E seus adeptos não suportam serem provocados, ainda mais no que concerne à religião. Como não têm argumentos inteligentes, usam as armas, argumentos dos boçais.


6 de janeiro de 2015

ÁRVORES

Li, consternada, sobre o abate de 298 árvores no aterro do Flamengo para facilitar as obras de um estacionamento na Marina na Glória, de olho nas Olimpíadas. Nada mais triste. A decisão teve aprovação de todas as instâncias de governo, inclusive ambientais. A Marina, como se sabe, é tombada, mas o IPHAN também não achou nada de errado na obra. E assim sendo, serra elétrica nelas, cuja importância e beleza ainda não foram descobertas pelos donos do dinheiro, a não ser para enfeitar maquetes.

Foi quando me lembrei desse poema:


ÁRVORES
Joyce Kilmer
(Trad.de Olegário Mariano)

Sei que nunca verei um poema mais belo e ardente,
Do que uma árvore; uma árvore que encerra
Uma boca faminta, aberta eternamente
Ao hálito sutil e flutuante da terra.
Voltada para Deus todo o dia, ela esquece
Os braços a pender de folhas, numa prece.
Uma árvore, que ao vir do estio morno, esconde
Um ninho de sabiás nos cabelos da fronde.
A neve põe sobre ela o seu níveo diadema
E a chuva vive na mais doce intimidade
Do tronco, a se embalar nos galhos seus:
Qualquer néscio como eu sabe fazer um poema.
Mas quem pode fazer uma árvore? - Só Deus.

...

ACREDITAR... EU NÃO *

Caros amigos,
Todos já fizeram seus votos de esperança para o Ano Novo. Uns acreditam mais, outros menos, alguns pensam que é pura continuação. Eu estou nessa terceira categoria, embora guarde uma certa esperança, sem a qual não se vive.
Mas agora o ano já passou, já é quase nosso íntimo, já fizemos nossas previsões e em alguns casos, provisões para o que virá, coisa que ninguém sabe. Seguimos, no entanto, com os mesmos problemas, cujas soluções não passam, como se sabe, de promessas.
E antes de qualquer coisa aproveito para sair em defesa de uma classe que está sendo a cada dia mais demonizada, sem diferença de idade, sexo, raça ou religião: a classe dos motoristas.

Cansei de ver os motoristas sendo acusados de tudo o que ocorre no trânsito; de ver, em telas de elevadores ou restaurantes uma cena terrível de acidente que poderá acontecer caso você não siga as normas de trânsito (a velha estratégia do terror); de ver pessoas com defeitos físicos nos sinais em decorrência de acidentes. Nunca se sabe se foram os causadores ou as vítimas. E também de ver os motoristas submeterem-se a bafômetros, extintores de incêndio, kit socorro, carrinho de bebê e outros pretextos para se ganhar dinheiro em cima dos otários que são, em primeiro e último caso, os motoristas. Isso, quando todo o mundo sabe que hora de morrer, morrer. O que aliás, acontece a toda o momento, sem que o motorista tenha com quem socorrer-se, nas ruas ou nas estradas.

Saio em defesa do motorista considerando que frente ao enorme número de carros que se deslocam diariamente para toda a parte, principalmente numa cidade caótica em que se transformou o Rio de Janeiro, a proporção entre motoristas que não causam estragos é absurdamente maior do que aqueles que causam. Ou seja, podemos considerar que a maioria dos motoristas age com prudência e bom senso, e melhor fariam se não fossem as regras de trânsito, seus agentes e a mídia, naturalmente, como sempre empenhada em tornar cada cidadão um atentado. Todos resolveram que os motoristas são seres raivosos e desprezíveis que saem todos os dias com o objetivo de causar um acidente e, com sorte, matar um. Errado: os motoristas existem porque é impossível usar o transporte público sem temor de falta de energia, de carros lotados, de longas esperas e de solavancos mortíferos.


Vocês estão cansados de ver placas nas estradas que dizem "Acredite na sinalização". Ora, uma instituição que pede que você acredite nela não é, não pode ser séria porque pressupõe que já está desacreditada. A partir daí você verá "fiscalização eletrônica" onde ela não existe; indicação de velocidade a 90km que, numa curva, baixa para 70km porque a polícia está fazendo uma blitz na qual só pára motos e carros velhos; indicação de 80km/h. na ponte, por exemplo, onde pode-se andar de 30 a 200km/h sem que alguém se importe. Ou ficar num engarrafamento porque a polícia está fazendo operação tartaruga. Fora isso, os guardas estão nas cabines (onde sempre estão) ou na sombrinha (ninguém merece esse calor).

Algumas multas nos dizem que um excesso foi detectado por uma "câmera discreta", demonstrando que querem mesmo é nos roubar, castigar-nos além dos pedágios (inconstitucionais) e dos buracos (absolutamente nacionais).

Com o verão e logo depois o carnaval, eles estão nas ruas para assegurar que nos atrasemos ainda mais e pensemos, quem sabe, em deixar de dirigir, criando assim um outro caos, que é o do desemprego na indústria automobilística. Não tem saída.

Ainda há uma profunda discrepância entre a política que estimula a venda de carros no Brasil (cuja compra é facilitada com redução de imposto), com potência impossível de ser usada nas estradas onde poderiam andar a 120km/h., mas o limite é 110km/h; onde é 60km/h, poderia ser 80km/h.; e assim por diante. A única coisa de que não cogitam é que o acaso existe.


Estradas movimentadas? Chuva? Confie no motorista. Está provado que a repressão gera revolta. Motoristas respeitados respeitarão mais o trânsito e causarão menos acidentes. É assim que funciona.

Existem os loucos, os sádicos, os exibicionistas? Claro que existem (e muitos deles são polícia). Mas isso há em qualquer categoria.
Você pode dizer: mas só os motoristas causam acidentes.
Errado. Os pilotos, os comandantes de navios, executivos de grandes empresas, donos de hospital - todos causam grandes males, com centenas de mortes, incluindo aí (como aconteceu no caso Collor) alguns suicídios.

Como vêem, a culpa não é só dos motoristas, a quem saúdo particularmente, desejando que suportem 2015.

No momento em que escrevia um raio matou cinco pessoas em São Paulo. 
Quem dirigia?


*Música de D. Yvonne Lara e Délcio Carvalho 

...

1 de janeiro de 2015

POEMA EM LINHA RETA




Poema em linha reta


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?



Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

...