21 de dezembro de 2014

ARMAS PARA TODOS

Acanhada entre as novidades lavadas (e mal lavadas) a jato sobre a Petrobras, eis que aparece lá embaixo, na página do jornal O Globo, disfarçada em rodapé, uma noticiazinha que diz: Congresso reduz imposto para armas de fogo.
Isso não é nada. Se você se der ao trabalho, verá que a MP 656 é uma bomba cujo estopim está aceso e vai ser jogada para Dilma.
A notícia diz: "A Medida provisória 656 foi aprovada pela Câmara e pelo Senado com mudanças que interessam a diferentes setores. Os parlamentares introduziram 43 temas no texto original. Uma das propostas reduz de 45% para 20% a alíquota do IPI cobrada sobre armas de fogo. Também prevê a isenção total para integrantes das Forças Armadas, policiais federais, policiais civis e militares dos estados". Mas esta é apenas uma das coisas que ela regula. O resto também é escabroso.
Em resumo, enquanto Bolsonaro late para a mídia, as medidas da direita vão passando no Congresso.

E aquela campanha toda do desarmamento? Que palhaçada foi aquela?
Deduz-se agora que as armas são objetos de absoluta necessidade para toda a família, que volta e meia está às voltas com algum tipo de seqüestro, assalto, estupro ou abuso de menor. A mensagem, no bom estilo norte-americano, é que importa. E a mensagem que o Congresso nos dá é: virem-se. Comprem suas armas, aprendam a atirar e saiam matando porque nós realmente não conseguimos proteger vocês.
E nem nos dizem onde estão indo as verbas para segurança, sempre mais gordas.
Ao aprovar essa medida o governo estará sinalizando com um evidente (e já constatado) fracasso na área de segurança.
Também fracassou no combate às drogas. E não está fazendo nada a respeito. Nem mesmo lendo.
Recomendo à Presidente e à sua equipe O Fim da da Guerra, de Denis Russo Burgierman, para que tenha uma visão mais realista do problema, pare com esse papo de pacto contra a corrupção e faça algo concreto.
Tenho pena, muitas vezes, de Beltrame, o herói(?) da segurança. Há tempos que ele vem dizendo que só a polícia não adianta. A Justiça também tem que ajudar. 
Beltrame quer que o major Edson dos Santos e o tenente Luiz Felipe de Medeiros (comandante e vice-comandante) da UPP da Rocinha onde foi morto Amarildo sejam demitidos da polícia Militar. Conseguirá? Ou será mais uma decepção para o Secretário?
Além disso, foi solto ontem, por força de habeas corpus,  o coronel Alexandre Fontenelle e mais 19, acusados de formação de quadrilha. O cel. Alexandre era o chefão.
A Justiça Militar revogou ontem a prisão do tenente coronel Dayzer Maciel, detido em outubro, acusado de receber propina para não reprimir o tráfico de drogas na Ilha do Governador, onde comandava o 17º BPM. A juíza achou que não havia evidências de que ele "traz riscos à ordem pública ou à conveniência da instruções criminal.
Tudo bem, eu sei que a corrupção não está só na polícia. Mas eles têm as armas. E ninguém sabe quantas vezes usaram, quantas venderam, quantas facilitaram. 


Eu devia estar contente, como dizia o Raul (não o Castro,  mas o Seixas) com o fim do bloqueio econômico dos Estados Unidos sobre Cuba, mas sei que um tanto ainda vai demorar para que se realize o sonho dos cubanos: trabalho e liberdade. A Revolução, a coragem de Fidel, o papel do Che, a luta do povo cubano. Tudo isso para voltar ao que era? 
Que nome dar a esses sonhos que o tempo tratou de diluir? 


11 de dezembro de 2014

(N)ATIVIDADE

Uns vão às compras, outros viajam, ou lavam as cortinas, os tapetes, emplumam as árvores de algodão falso. Eu também estou em franca atividade. Fui às estantes. Da última vez que mudei não arrumei direito o que devia. É tempo de fazê-lo. Que alegria abrir esses livros há tanto intocados, folheá-los e sentir outra vez, e então trazê-los à luz, jogá-los no universo, animar a festa.
Quem arruma estantes de livros sabe que isso não é trabalho rápido. A cada livro, uma olhada, a cada olhada, um apego que às vezes vai até o fim. E então separar alguns, novamente lê-los, novamente abraçá-los, desarrumando tudo.

E estou apenas na letra A.

ADELE WEBER

O cubo

A viagem não é vã
sente o estrangeiro que há em todo homem.

Em cada canto do mundo
alguém sempre percorre um quarto
sangrando gota a gota
o ato de preencher o cubo
com o seu tamanho.

(in Inversão Íntima, 2010)

ANTÔNIO BRASILEIRO

Para que os dias não sejam apenas breves

Porque viver é mesmo o necessário
e o que fazemos é só uma passagem
entre a beleza e o tédio,

mister reconhecer nossas fraquezas:
viver é que é mesmo necessário,
o resto é invencionice de poetas.
O resto - poesia e morte, sossego
e abandono  é o que inventa a ociosidade
                                               para que os dias não sejam apenas breves /

                                               para que os dias não sejam apenas breves.

                                              (in Cantar da Amiga, 1989)

ÂNGELO ALFONSIM


Rio X

Incorporo o incômodo
O modismo me incomoda
e não tenho bons modos
Rasgo rótulos
e receitas
e não saio na foto
Minha revolta sai pelos poros
Minha palavra vaza pelos olhos
A solidão não suporta meu isolamento
Minha sombra assusta o medo
Deus reza para não me encontrar
O diabo me engole
mas devolve

(in /colecionador de infinitos, 1994)




ARICY CURVELLO



toda quimera se esfuma 

janelas abertas par em par,
entra o ar
que vem dos longes do oceano,
o alto mar amanhecendo
altas, altas campinas de nuvens.

em mínimo chão te arrastas
por elas:
sem asas,
te alimentas é de palavras e réstias.

brancas, brancas sombras da manhã,
mais branco é teu coração recomeçando.
ser é uma invenção constante.

(in Mais que os nomes do nada, 1996)



ARMANDO FREITAS FILHO

a felicidade pode ser de carne
de pele apenas - corpo sem cara
perna musculosa, clavícula
omoplata, ventre liso esticado
peludo no lugar certo do sexo
e mais o cheiro preciso, exasperado
da axila, virilha, pé
tudo chegando junto, de uma vez
ou aos poucos, esquartejado
(in Números Anônimos, 1994)

ASTRID CABRAL

Cave Canem

Dentro de mim há cachorros
que uivam em horas de raiva
contra as jaulas da cortesia
e as coleiras do bom senso.
Solto-os em nome da justiça
tomada de coragem homicida.
Mas sabendo que raiva mata
à míngua de domar meus cães
vacinei-os. Ladrem mas não mordam
e caso mordam, não matem.

(in Lição de Alice-1986)

AUGUSTO SÉRGIO BASTOS



Desde pequeno
me fiz ouvinte.
Rezo quando preciso
ouço todos os conselhos.

Não tenho a crisma
o batizado não recebi.
Das minhas igrejas
há muito me perdi.

Da vida e da missa
sei metade
 por inteiro só o canto dos pássaros
e esse pé cravado na infância.

(in À luz da estante, 2010)


8 de dezembro de 2014

POESIA FALADA (2) - Wislawa Szymborska

Wislawa Symborska (1923-2012)
Nasceu em Bnin, na Polônia. Em 1931 mudou-se para a Cracóvia, onde viveu até morrer.
Prêmio Nobel de Literatura  em 1996.
O poema falado faz parte do livro [poemas] editado pela Companhia das Letras em  2011 com tradução de Regina Przybycien



https://soundcloud.com/helena-ortiz-poesia-falada/ocaso-do-seculo-poema-de-wislawa-szymborska

27 de novembro de 2014

POESIA FALADA (1) - IDEA VILARIÑO

Estes são os primeiros poemas falados que pretendo editar em série. 
Por que?
Porque gosto deles e também de falar poemas.
A poeta uruguaia Idea Vilariño abre esta série 
em que a relembro e homenageio.

Idea Vilariño (18/08/1920 - 28/04/2009)                                 Poeta, ensaísta e crítica literária uruguaia.




https://soundcloud.com/helena-ortiz-poesia-falada/pobre-mundo-idea-vilarino

https://soundcloud.com/helena-ortiz-poesia-falada/ontem-a-noite-poema-de-idea-vilarino

https://soundcloud.com/helena-ortiz-poesia-falada/carta-poema-de-idea-vilarino



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13 de novembro de 2014

MANOEL DE BARROS (1916-2014)

Conheci a poesia de Manoel de Barros quando li, pela primeira vez, numa sala de espera de um consultório médico, seus poemas publicados na revista Caras. Quem diria! Mas no rodapé indicava o livro. Era Gramática Expositiva do Chão, que corri para comprar e ao qual volto e voltarei porque foi como uma anunciação. Depois vieram a fama e um sem fim de "insignificâncias" de onde ele tirava sua poesia original.
Agora não está mais no Pantanal. Não está descobrindo imagens em grampos enferrujados e outros objetos desúteis. Não está mais habitando o mundo, a terra, da qual sempre esteve tão perto. Foi para outras paragens, às quais já pertencia. Deixou-nos com a sua poesia, que é enorme, e traz natureza e humanidade, embora até hoje se pense que são coisas dissociadas.



Na enseada de Botafogo
Manoel de Barros

Como estou só: Afago casas tortas,
Falo com o mar na rua suja...
Nu e liberto levo o vento
No ombro de losangos amarelos.

Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda de mar de Botafogo!
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!

Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?

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9 de novembro de 2014

PARCEIROS SINISTROS


Volto ao tema surrado mas sempre atual: legalização das drogas. Que agora tem dois parceiros declarados: A Rede Globo, que não deixa passar um dia sem publicar meia ou até página inteira sobre a questão em suas múltiplas faces e a polícia, que não deixa passar nem um dia sem que se descubra uma ligação com a corrupção e o tráfico. O que estará atrás disso, não sei, ninguém me conta. Mas tenho bons motivos para desconfiar.
Com parceiros como esses, impossível que a proposta da legalização não avance, apesar da sabida resistência conservadora (ou investidora?)
O que temos é: o consumo de drogas, da mais palatável às letais, não vai acabar, com legalização ou sem ela. É tão antigo quanto o mundo e a insatisfação humana com a realidade.
A legalização significará para alguns uma perda absurda de dinheiro. Mas tirará da prisão muitos jovens pobres que fumavam um baseado, outros em que a prova foi plantada, evitará a primeira prisão, o primeiro crime, o grande ódio.
Só não ressuscitará  o contingente de jovens mortos em "autos de resistência"
Enquanto isso, a Justiça está cuidando dos seus 20%.

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30 de outubro de 2014

QUE DROGA É ESSA?


Não, meus caros, nada de eleições. Não escrevi sobre elas porque não acredito que seja democracia o que chamam de democracia. De qualquer forma, não me omiti e, confesso que durante a apuração, tive meus medos. Ainda bem que não rolou o retrocesso, a vitória dos reaças, o êxito dos raivosos que, contrariados em seus argumentos terroristas, querem até guerra civil, como se ela já não houvesse.
Retorno, portanto, aos velhos temas, entre os quais está a legalização das drogas, por exemplo, que alguns dizem que não é assunto prioritário, mas cuja proibição é a fonte alimentadora da "nossa" guerra.
O Globo publicou hoje que a maconha medicinal é aprovada em Comissão do Senado, o que é apenas um início, tendo em vista a burocracia que a espera, de mais uns avancinhos sobre a questão usuário/traficante - uns avancinhos frouxos, que em nada vão adiantar para evitar as mortes da grande população pobre pobre e negra, vítima contumaz de qualquer guerra.

Diz a matéria que, pelo menos, será permitida a importação de derivados da maconha para uso medicinal. Se não o fizer, penso eu, o Estado torna-se, como já é, co-autor das mortes de pessoas que não tiveram acesso ao produto por conta das restrições da lei.
Foi na questão que estabelece parâmetros para diferençar usuário de traficante que eu morri de rir. Conforme o jornal, será considerado usuário quem portar drogas em quantidade suficiente para consumir por até cinco dias. Fernando Henrique, o libertador, acha que devia ser por 10 dias, mas não rolou. Isso mostra que FHC está cada vez mais compreensivo com os usuários. Talvez tenha tragado depois de dizer que não tragou, e por fim entendeu.
Agora, quanto será essa quantidade que estabelece quanto cada pessoa pode fumar por dia? As pessoas são diferentes e seus desejos não podem ser medidos.  Pois a difícil tarefa estará a cargo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Fiquei imaginando o pessoal da Anvisa reunido num sítio bem legal, protegido pela polícia, fumando desde o fumo importado das melhores sementes até o prensadão que o usuário comum é obrigado a fumar (sabe lá com quantas coisas a mais) porque não pode plantar o seu. Um barato de executivos - essa é boa!
Deixa eu provar essa daí. Essa aqui é da hora. Nossa, que coisas eu estou vendo! Passa aí, ô meu.
E tudo às risadas de coisas que jamais se lembrarão.

No mínimo terão vivido bons momentos, com boa comida para atenuar a larica e um alcoozinho envelhecido porque afinal é difícil deixar os velhos vícios.
Aí então saberemos quanto cada usuário poderá portar de produto proibido. Não é um espanto?
Equivale a estabelecer que o uso de armas é ilegal, mas se for uma pequena, tudo bem.
À frente, companheiros.
O futuro já está cansado e nós ainda estamos aqui inventando a roda. Enquanto isso a polícia ocupa cada vez mais espaço nos jornais onde aparece não como agente da lei, mas como campeã de crimes.
O que se conclui é que se trabalha em cima de paliativos, e não de soluções. E assim segue o tráfico de drogas, acompanhado do que verdadeiramente interessa : o tráfico de armas. Enquanto os investidores subornam polícia, e justiça e até igreja.

Deixo-lhes a mensagem mais
positiva que posso:

ALTERNÂNCIA:

ínútil celebrar só as vitórias

que consagram a vaidade
celebremos também os fracassos

passada a primeira frustração

logo ali desponta a fria
análise dos fatos

e eis que vislumbramos a vitória

que se mostrará novamente
provisória




20 de outubro de 2014

ZUMBI - A LUTA CONTINUA




No dia de homenagem a Zumbi, e distante da lei que libertou os escravos, a grande maioria dos homens e mulheres presos neste momento no Brasil é de negros. Todos eles sofrem até hoje com o mesmo preconceito, do qual se nutrem as polícias repressoras da pobreza identificadas pela cor, embora ele tenha sido em parte calado (mas não transformado) pelas políticas de afirmação. 
Todos louvam a grande contribuição dos negros na construção do País e da sua cultura, mas esquecem que há muitos negros que não são músicos, nem bailarinos, nem atores, nem desportistas; que não estão representados na vida pública e ainda engatinham nas profissões liberais.
Enquanto todos lembram a primeira, a segunda guerra e o golpe de 64, para que não esqueçamos os crimes cometidos, aqui mesmo, na nossa cara, diariamente, os mesmos crimes são cometidos, sistemática e impunemente. No Brasil ainda se constrói quilombos como uma forma dos negros se defenderem dos brancos. Quando se fará, eu pergunto sempre, a Comissão da Verdade para os negros?
Quanto às mulheres, não é nem bom falar. As mulheres ainda trabalham como burros e têm agora um novo dominador, que é a estética dominante. Brancas e negras sofrem de mal chamado exacerbação da futilidade. Parece que não há mais nada a conquistar a não ser um bom cabelo. Será para isso que tantos morreram?
Que nos perdoem todas as vítimas do preconceito e mais do que isso, das idéias que o estimulam; dos comportamentos que têm como característica a humilhação e, sempre que for possível, a morte, seja com que arma for.
Zumbi chega aqui acompanhado de outro grande, Cruz e Sousa, ambos vítimas da ignorância e da presunção de superioridade dos brancos.



ESCRAVOCRATAS
Cruz e Sousa


Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
ardentes do olhar — formando uma vergasta
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos a espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
da branca consciência — o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!


...

14 de outubro de 2014

À QUEIMA-ROUPA

Assisti ontem à pré-estréia do documentário À queima-roupa, dirigido por Thereza Jessouroun sobre a ação da polícia frente aos pobres, com o beneplácito do Estado, sempre com o pretexto da guerra às drogas.
A polícia, como se sabe, é o braço armado do Estado. Se ela age mal e o Estado não toma nenhuma atitude, então ele também é responsável. Fingindo de morto ele mesmo, permite que os seus servidores, responsáveis pela segurança dos cidadãos, pratiquem toda a sorte de atrocidades, algumas identificadas com práticas da ditadura.
Investidos de uma autoridade maior do que a que realmente têm, pessoas despreparadas, corruptas e bestiais levam o pavor (até hoje) às comunidades pobres, enfiando o pé na porta e matando à queima-roupa famílias inteiras, pelo puro prazer de matar, conforme mostra o documentário, que aborda o período de 1993 a 2013, duas décadas de abuso e mortes cuja justificativa real é sempre o acerto de contas (em dinheiro).
Os depoimentos das vítimas que sobrevivem por milagre ou azar, ou de parentes de pessoas mortas, aliados às imagens, são de fazer chorar, de tristeza e impotência.
A guerra às drogas é a bandeira levantada para que a polícia cometa toda a sorte de atrocidades, quando todos sabemos que o verdadeiro motivo é o dinheiro. Um pouquinho pra mim, outro pouquinho para você. E assim as equipes da corrupção se movimentam de um esquadrão para outro, de uma delegacia para outra.
O filme é duro e triste e, na minha opinião, poderia ter economizado nas imagens com cadáveres, mas isso não lhe tira o mérito, que é grande. Corajoso e necessário, mas muito, muito difícil de suportar quando se conclui que passados tantos anos, a polícia ainda não recebeu uma cartilha nova.
Depois da apresentação do filme houve debate, (Julita Lemgruber, Ignacio Cano, Marcelo Freixo, Luiz Eduardo Soares e Vera Lúcia Silva, sobrevivente da Chacina de Vigário Geral), mas eu não fiquei. Nem sei sei poderia haver alguma pergunta da platéia emudecida por tanta verdade. 



À QUEIMA ROUPA
Dirigido por Theresa Jessouroun, com consultoria de Julita Lemgruber e Ignácio Cano, o
documentário À queima-roupa é um retrato forte e realista das barbáries cometidas por policiais na 
cidade do Rio de Janeiro, nos últimos vinte anos.
À queima roupa conta com uma inédita e polêmica entrevista de um X9, ex-informante da polícia, 
que se tornou a principal testemunha de acusação da Chacina de Vigário Geral, onde 21 pessoas 
foram assassinadas, em 1993.
O filme apresenta depoimentos do advogado João Tancredo, que tem se destacado por defender 
famílias de vítimas da violência, como nos casos do Amarildo e da Cachina do Alemão; do Promotor
Paulo Roberto Mello Cunha Junior, que trabalhava com a juíza Patricia Accioli; da Juíza Elizabeth 
Louro; da Promotora Carmem Elisa; do Desembargador José Muinoz Pinheiro Filho; do Coronel da PM 
Íbis Pereira; de Jadir Inacio, Rosane dos Santos e Vera Lúcia Silva, sobreviventes da Chacina de 
Vigário Geral; de mães de vítimas e de um sobrevivente da Chacina da Baixada, entre outros.
Ignacio Cano é sociólogo e pesquisador do Laboratório de Analise da Violência da UERJ. Julita 
Lengruber é coordenadora e fundadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da 
Universidade Candido Mendes, foi diretora geral do sistema penitenciário do Estado do Rio de 
Janeiro. 
Sinopse
Documentário investigativo sobre a violência e a corrupção da polícia do Rio de Janeiro nos últimos 
20 anos. O filme apresenta os fatos mais emblemáticos deste período do ponto de vista dos 
familiares, testemunhas, sobreviventes e demais envolvidos diretamente nos casos, como 
advogados, promotores e juízes. O filme parte da Chacina de Vigário Geral, de 1993, culminando 
com execuções cometidas em nome da lei, em 2012 e 2013. Os fatos são apresentados através de 
entrevistas, imagens de arquivo e cenas ficcionais que reconstroem a memória dos sobreviventes 
das chacinas. O filme traz o depoimento inédito de um X9, informante da polícia militar, que 
apresenta um quadro assustador do funcionamento interno de uma parcela dos policiais que agem 
em conivência com traficantes, resultando em atos de extrema violência contra a parcela mais 
carente da população.

YES, NÓS SOMOS BANANAS




Durante 20 dias (o tempo em que não publico) aconteceram coisas inumeráveis, no amplo e no íntimo sentido. Para cada um de nós, para nossos desejos ou interesses. O mundo, por sua vez, movimentou-se como sempre na disputa pelo poder, e todos cumpriram o seu papel entre exploradores e explorados, ricos e pobres, pensadores e pensados, sofisticados e sem-teto, mendigos das estradas, moradores de cortiços, presos - principalmente os presos em quem a gente teima em não pensar a essa hora, com esse calor, os presos pequenos, os presos pretos que trazem ainda a revolta das galés. Como não estaríamos vivendo esse inferno sob o peso de tantas emanações pesadas?

O que vejo é que as eleições nos acenam com o retrocesso, e isso significa a liberação dos anos de inveja e raiva reprimidas. Não estou falando de Dilma e Aécio, que ainda não se confirmaram, mas do resultado geral em que a direita (e vamos chamar assim aos reacionários) organizada e rica, alastrou-se pelas câmaras de representação política.. Pensei e pensei e só pude me conformar com o que ensinam as oscilações da história: um tempo de progresso, outro tanto de retrocesso. "O físico", um filme em cartaz, mostra a quanto pode nos levar o obscurantismo e a vaidade extremada.

Digamos que a única coisa positiva foi a queda do clã Sarney no Maranhão. Não é pouca coisa para 50 anos de dominação. Que seja o início do fim da imortalidade do capo que resguardou o Maranhão do progresso geral, exatamente como fez Antonio Carlos Magalhães, que como se viu, era mortal.
Mas para essas figuras, a morte não significa nada. A única coisa que significa é o poder.

Quanto a Pezão... bom, se ainda votam em Pezão pós-Sergio Cabral, então não há mesmo nada para entender. Vejamos o que nos espera, embora já saibamos.

A imagem é uma tempestade de William Turner. Para que nos acostumemos às tempestades.

E se por acaso os desanimo, peço desculpas e reproduzo aqui a piada do José Simão:

No Rio, "Pezão esmaga Garotinho e o bispo passa por cima."

16 de setembro de 2014

LUPICÍNIO RODRIGUES (1914-1974)



Há 100 anos nascia o compositor Lupicínio Rodrigues, o criador da dor de cotovelo. Como o poeta Mário Quintana, nunca quis deixar Porto Alegre. Foi lá que compôs e juntou as pessoas em torno da sua música. A cidade era sua terra e sua fonte. E sempre nos admiramos que a imprensa não tenha celebrado merecidamente esse centenário, embora hoje em dia essas celebrações tenham virado também comércio. Mas a obra está aí, na memória dos mais velhos e no encanto dos jovens. As dores de cotovelo não estariam completas sem Lupicínio. E também não acabam aqui.

,,,

9 de setembro de 2014

SEXISMO RACISMO E MACHISMO


Enquanto a sociedade brasileira avança lenta e teimosamente para diminuir o peso do sexismo, do racismo ancestral e do machismo, (que ninguém combate suficientemente), no campo do entretenimento A Globo, a boazinha Globo que se empenha tanto na arrecadação para o Criança Esperança inclui na sua grade de programação o programa do Sr. Miguel Falabella, chamado "Sexo e as negas". As chamadas na televisão já levam a concluir do que se trata, e as cenas mostram mulheres negras aparentemente muito senhoras de si, mas na verdade usando o sexo para impor-se na sociedade, que se aproveita delas e depois ignora-as.

Nunca fui adepta do politicamente correto. Para mim, significa varrer para debaixo do tapete as coisas feias que pensamos mas que, na profundo de nós mesmos, não achamos certo expressar. Os inventores das políticas públicas então vieram com essa coisa de afro-descendentes, terceira idade, pessoas em situação de risco, deficientes visuais, etc. Penso que os nomes são muito menos importantes do que as ações. E como valorizar pessoas que se vêem corrompidas na televisão? 


O Governo, sempre muito ocupado, faz leis no sentido de diminuir esses abismos, mas para que servem? E quem as cumpre, se os negros ainda entram pela porta de serviço? Como acreditar que as mulheres ainda são vítimas de espancamento e morte todos os dias? Como humanizar uma comunidade degradada em que sexo é comida? 

A televisão, todos sabem, é o meio de comunicação de maior abrangência e perde feio para as escolas, que não sabem seduzir, com seus conteúdos estagnados, seus professores cansados e seus pátios de concreto. E agora, para piorar, com policiais infiltrados. Será que as mulheres negras se sentirão retratadas? Será que se orgulharão daquelas pessoas que as estão representando? Será que alguma delas sentirá um chamado inconsciente para a vida difícil? Onde estão as organizações pelo direito dos negros? 
A literatura do imenso Monteiro Lobato já foi considerada racista. Mas os livros foram escritos em outra época, bem diferente. O programa anunciado, no entanto, é para já, é atual, e contra ele ninguém se insurge? Eu também ia perguntar onde estão as organizações feministas, mas aí lembrei que o feminismo acabou. Enfraquecido o movimento, foi rápida a mudança. As mulheres deixaram para lá as conquistas possíveis e foram alisar os cabelos, botar botox e se atrapalhar nos saltos. 

Tudo bem. Podem dizer que isso é coisa de velha. Mas por ser mulher, mesmo branca, tenho muitas histórias de preconceito e violência no passado. Lutei minha pequena grande luta e me orgulho de tê-lo feito. Por isso é que essas coisas me ofendem. Sob o disfarce da comédia e do entretenimento reforçam-se os conceitos da dominação e cavam-se mais abismos. É triste saber que muitas mulheres ainda (e quantas!) são vítimas de exploração, no público e no privado. Os programas que pisam na cultura e na cidadania das minorias (que minorias? as mulheres são 52% dos eleitores) apostam numa sociedade partida - branco no preto.





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2 de setembro de 2014

IVAN JUNQUEIRA


Há um mês morreu Ivan Junqueira. Como assim, morreu? Se na segunda-feira mesmo o vi, com Antonio Carlos Secchin e Alexei Bueno, passeando em Copacabana, falando do tempo em que vivem e da poesia?

Não é todo o dia que vemos um trio desse quilate assim, misturado ao povo. Só podia mesmo ser um documentário. Mesmo assim, gostei de vê-lo, gostei do entusiasmo, ainda que contido, com que sempre fala em poesia. Gosto da sua voz cavernosa falando poemas, uma voz que parece vir da tumba; da extrema preocupação com a morte, com o mistério da morte que ele, um ateu convicto, não reconhecia.
Gosto de ver como defende a sua devoção à poesia metrificada que, ao contrário do que dizem os que a rechaçam, o faz sentir-se absolutamente livre, sem que o incomodem os limites do metro. 
Ivan Junqueira, jornalista de profissão, poeta, crítico e tradutor foi uma inteligência brilhante que passou por aqui sem receber o reconhecimento (e mesmo o conhecimento) devidos aos poetas de vulto, o que é comum. 
Depois que entrou para a Academia IJ ficou ainda mais sério, mais sisudo, mas seus companheiros sempre o acharam uma ótima companhia, e engraçada, com gosto pelas tiradas surpreendentes. 
A poesia não, a poesia é tão exageradamente soturna que em algum momento pode-se até achar (eu, pelo menos, acho, algumas vezes) uma certa graça na maneira como penetra nos temas mais íntimos e sombrios conservando uma postura intangível.
Muito mais coisas há que dizer sobre o poeta, mas isso o documentário já fez, ainda que tenha sido curto para tanta vida e obra. 

Até mais, Ivan Junqueira. E que te encontremos outras vezes. Nos livros, na memória, na calçada ou na tela da tv, e tua poesia estará ainda mais viva porque a morte está sempre em ação, esta que tanto te consumiu e da qual agora estás livre, assim como estás livre da vida, que tantas dúvidas e desassossego te trouxe, mesmo que tenhas vivido também alegrias. Para um poeta, viver é sempre um ato extremado.

ELEGIA ÍNTIMA

Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada.
Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite
apunhalou o sono de Deus.

(do livro Os mortos, 1964)


MORRER


Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.

(do livro O grifo, 1987)




Esse punhado de ossos

a Moacyr Félix

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esquilo e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.

(do livro A sagração dos ossos, 1994)

20 de agosto de 2014

POESIA PERNAMBUCO



A vida é isso que já constatamos: um nascer e morrer sem fim. No intervalo, os membros da espécie encontram o quê fazer nesse caldeirão de pratos feitos que é o dia-a-dia. Desde que somos pequenos nos ensinam coisas: regras de convivência, o que pode e o que não pode, o que se deve e o que não se deve. O resto da vida levamos para saber o que realmente procede e nos mantém dentro dos limites e o que nos mentem para nos explorar. Levamos, portanto, uma vida para saber que a coisa não era bem assim, e quando sabemos, ela já vai acabando.

No meio da multidão da espécie nascem os poetas. Iluminados, enigmáticos, proféticos. Não é fácil sê-lo, e menos ainda nesses pobres tempos em que o deus mercado se apropria de tudo o que é original, e, quando não há, cria alguma coisa que pareça. Os poetas ficam à margem. Alguns, por geniais, se agigantam; outros se deixam cooptar por um sonho vencido e ainda outros sabem que sua voz não é ouvida mas não deixam de escrever porque essa é sua necessidade. 
O Brasil inteiro é berço de altíssimos poetas, mas talvez seja em Pernambuco onde eles mais proliferam, movimentam-se, encontram-se (porque são muitos) nas ruas e nos bares. E tem o cinema, a música, tudo é original em Pernambuco, em especial em Recife. A única coisa que não muda são as oligarquias e suas hordas.
Há pouco tinha morrido Eduardo Campos e recebo do meu querido amigo e poeta Joca de Oliveira uma cesta-poesia. (Que tal, Dilma?). Na cesta, os Quase Haicais II de Joca, a edição nº 13 do Balaio de Gato, obra do incansável Jorge Lopes, o livro de Manoel Cardoso Esmerilho-me na lâmina do dia, Do moço e do bêbado, de Erickson Luna e por fim o CD Digitais, onde estão 360 poemas de Malungo que, sempre ligado, encontra a poesia e traduz o sentimento das ruas que cruza, igualzinho ao que canta a Nação Zumbi: Quanto vale um Malungo/ Malungo vale uma vida/ um samba de muitas cores, passos, bits, vibrations, uma rajada de notas viradas, equilibradas, partidas.
E chega de papo e viva Jorge Lopes, Chico Espinhara, Tarcísio Pereira e a Letra 7 e todos os poetas que criam a cultura brasileira com alma pernambucana. Viva Joca e Wilson Vieira, Viva Jomard Muniz de Brito, que não pode ficar de fora de qualquer coisa. Muito menos de poesia. Muito menos de Recife.



Alguns poemas estão em






17 de agosto de 2014

AOS QUE SE VÃO


Ariano Suassuna não existe mais no mundo dos vivos. Há de criar outros mundos, onde estiver, ou outros movimentos, que sua vitalidade ainda era para muito. A sua morte, e as outras que vieram depois ainda tentam se encaixar na realidade quando Eduardo Campos explode no rol das improbabilidades, atropelando todas as outras que se ofereciam a ela: a dos agonizantes, dos suicidas, dos desnutridos. A morte, no entanto, não dá a mínima para probabilidades. Ao contrário, prefere surpreender. Dessa vez concretizou-se numa explosão que impactou o Brasil, trouxe a trágedia para a realidade da família de cada vítima e mexeu profundamente com o processo eleitoral. Não nos queixávamos da apatia? Pois aí está o fato que nos faz cair sentados, sem entender nada, ou pelo menos sem entender por muito tempo, até que chegam as notícias, os analistas, a nossa própria elaboração do que aconteceu. 
Nada muda. Nesse momento há novos filhos sem pai, conhecendo a morte irreparável,  trazendo-lhes uma sombra que pesa para quem tinha a certeza de um futuro promissor. Depois do enterro, a pergunta: e agora, o que vai ser de mim? O tempo, dirão uns, o tempo tudo aplaca. às vezes até cura. 
Passado isso, preparo-me para a morte de amanhã e me pergunto: o que ficou? O presidente do partido e Marina fizeram um pacto de não falar em sucessão antes do enterro, Entretanto anteontem mesmo os jornais já levantavam a possibilidade da viúva de Eduardo Campos ser vice de Marina. Ora, isso quer dizer que a viúva deve ter sido consultada e que portanto não houve pacto nenhum. O pacto era só para figuração, sentimentalismo. E com essa mentira iniciam uma campanha, uma nova campanha. 
Ah espécie humana, tão especial. Chora, ri, sofre e tortura.  Uns são políticos, outros são poetas. Uns riem sempre. Outros têm um cantar estranho.


LÁPIDE

Ariano Suassuna


Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.

Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.

Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido

que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!

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10 de agosto de 2014

URUGUAY - A LIBERDADE É AZUL




Houve Copa? Já ninguém se lembra. 
Naquele tempo fui ao pampa, cujas fronteiras são linhas imaginárias, uma terra só, como no livro de Aldyr Schlee, uma terra a que pertencem todos os gaúchos, muito, muito antes das fronteiras e das cercas de arame farpado. A planície, o pôr-do-sol, o frio, o frio.
Mas quando se chega de viagem, tudo não é mais. Parece até um sonho o que foi vivido há tão pouco tempo, a realidade com a qual convivemos durante dias: ruas, clima, idioma, pessoas que se tornam conhecidas, que passam a nos cumprimentar. Tudo vai se diluindo na memória.
Mas tem uma lembrança que não quero deixar de registrar: estar cara a cara com a liberdade. 

Cheguei muito cedo a Montevideo. Fui de ônibus de São Paulo até lá. Não queria me aborrecer com revistas em aeroportos. Detesto ser revistada em aeroporto e muito por causa disso vou dispensando os aviões. Um frio de dois graus e o ônibus parado na alfândega, horas, nada acontecendo, só homens caminhando, no frio, todos com a cabeça enfiada no pescoço, como se adiantasse. E ainda mais quatro cachorros farejadores e feios, daqueles de corpo gordo e pernas curtas e finas. Que merda, pensei. Mas então o ônibus saiu, afinal.
Em Montevideo a entrada no hotel era só às 14h. Deixei mala, tomei café e saí pra 18 de julho rumo à feira da Tristan Narvajo. Longe, para quem está com frio. Mas era preciso, além de tudo, fazer hora. 
Domingo, o centro vazio. Caminhar, caminhar, o vento cortando pele e lábios, até chegar às mesmas bancas de sempre, nessa hora apenas poucas armadas. Fui até o fim, andei pra lá e pra cá à procura de uma nesga de sol que fosse, mas o sol não vencia o frio.
Na volta já havia bancas arrumadas e foi quando vi umas coisinhas com a folha da maconha: cinzeiros, cachimbos, maricas, quimeras. Finda a compra perguntei: e o produto? Quer também? perguntou o vendedor ao lado (que era artesão de Uberaba) Eu disse que sim e ele me mostrou, dentro de um pote de vidro, uns camarões que há tempos eu não via. Quer fumar? me perguntou o outro. Agora pode. Quer dizer, eu e o amigo aqui já fumamos há 40 anos, mas agora pode mais.
Ele fechou um baseado ali mesmo, fumamos, a maconha era boa, eu fiquei por ali, o povo chegando, o sol demorando, um frio de matar, una charla. Ele me disse que estava indo para Punta del Diablo, se eu queria ir... Eu? Presa às reservas e às datas? Me despedi e segui meu caminho. Que caminho? Sozinha em Montevideo, um frio de lascar, os uruguaios vendendo coisas inacreditáveis ou trocando entre si as coisas velhas que se acabam, mas continuam à venda.
Caminhei muito naquela manhã, agarrada às minhas valiosas compras, aproveitando efeitos que um café ou uma cachaça não me dariam. E nem poderiam. Estava tudo fechado.
Perto do meio-dia achei um restaurante. De cara tomei dois chocolates espessos. Depois vieram os chivitos. De postre: torta de maçã. Tudo junto para aliviar o frio, a fome e a sede.
Perdi a vez em Amsterdam, mas ao Uruguay eu fui. E depois: Parque Rodó, Rambla, Malvín, Pocitos, porto. Tudo livre, tudo limpo. 

Agora vejo Dilma de mãos dados com os evangélicos. Cabeça e pés voltados para o passado. A cabeça quente com a pressão dos votos. Onde está o ímpeto revolucionário? Só houve, desde aquele tempo, um ideal a alcançar? Como se o homem não fosse uma máquina de querer...?
Onde está a vontade de acabar com a guerra às drogas, (a que chamam a guerra aos pobres) a prisão arbitrária, o abuso de autoridade, a milícia, a tortura nas cadeias, a desumana superlotação? 
No Uruguay, que eu saiba.

Quem tem essa coragem?
Pepe Mujica, que eu saiba 


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7 de agosto de 2014

O CHEIRO DA MENTIRA

Vocês já repararam como o Aécio está parecido com o Toni Ramos? A nobreza rural e o Friboi andam de mãos (ou patas?) dadas. Há mais tempo, antes da Copa, o Aécio dizia na televisão que queria falar comigo. Fiquei apreensiva. Que coisa! O Aécio querendo falar comigo. Que teria ele para me dizer? Bom, por via das dúvidas desativei meu celular.

No governo FH, quando o Serjão morreu (alguém se lembra do Serjão?) e Arruda despontou como liderança eu vi de cara: um canalha. E não me decepcionou.


Também há alguns anos quando houve eleições e eu, motivada pela possibilidade de representar os interesses dos escritores, me candidatei pelo Partido Verde (sim, eu fiz isso), conheci na convenção do partido (mas não fui apresentada a), Rodrigo Bethlem, egresso do PFL, se não me engano, e senti logo o cheiro de corrupção. Pensam que não tem? Trabalho com eles há muitos anos. É possível sentir.


Pois bem, o que eu quero mesmo dizer é que as eleições estão aí,diferentemente da Copa, sem paixão alguma, sem sacrifício de ninguém, sem torcidas que não sejam pagas. Isso é democracia, dizem. É como ver um filme fraco com alguma complacência, ainda que nos doa a perda de tempo e, seriamente, a complacência.


Havia uma ditadura. Queríamos votar. Finalmente chegou o dia. Votamos. E votamos de novo. E os milicos foram se recolhendo aos quartéis.  E já eramos uma democracia outra vez. E agora? Ninguém nos entusiasma. Mas as eleições existem. Não era o que queríamos?



O chato ao se escrever sobre eleições é que as postagens vão sem fotos. Vocês hão de concordar que não dá pra poluir um espaço onde se quer verdade.


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17 de julho de 2014

POESIA CONTRA A GUERRA

Tenho abandonado meu blog, que é como um diário, sem muitas normas, que escrevo com a estufa ligada e uma outra chama, que reconheço minha. Enfraquece, a chaminha azul.  
Deixei-o pela indiscutível eficácia do facebook, mas volto, como se voltasse a mim mesma, menos pública, de pantufas, na árvore longínqua em que vou me transformando - um tronco, pronto a se observar por centenas de anos.
A guerra me atravessa. Mas eu sei, e vocês também, que sempre há tempo de guerra em algum lugar. Umas são mais midiáticas, todas são contra os pobres.
Houve o tempo da resistência pelas idéias, da resistência armada, dos radicalismos. Dos hiatos a que chamaram paz. Tratados desonrados do aperto de mão a assinaturas intraduzíveis. Sempre há. 
Não devemos incorrer nos mesmos erros. Guerras não são partidas de futebol que nos levem a torcer por um ou outro time. Nada de raças, bandeiras ou religiões de preferência. Estamos tratando da mesma humanidade. 
O que não devemos nunca esquecer é o que já aprendemos pela voz do poeta. E a poesia é a alma da paz.


A Guerra que Aflige com seus EsquadrõesA guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo, 
É o tipo perfeito do erro da filosofia. 

A guerra, como tudo humano, quer alterar. 
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito 
E alterar depressa. 

Mas a guerra inflige a morte. 
E a morte é o desprezo do Universo por nós. 
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa. 
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar. 

Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs. 

Tudo é orgulho e inconsciência. 
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto. 
Para o coração e o comandante dos esquadrões 
Regressa aos bocados o universo exterior. 

A química directa da Natureza 
Não deixa lugar vago para o pensamento. 

A humanidade é uma revolta de escravos. 
A humanidade é um governo usurpado pelo povo. 
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito. 

Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural! 
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem, 
Paz à essência inteiramente exterior do Universo! 


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa




2 de julho de 2014

MORDIDAS E BEIJOS


Pois eu, que não me interesso por futebol e não sei nem os horários dos jogos acho que a punição de Suárez foi exagerada. Gostei de Suárez porque achei que se assemelha a Ricardo Darín, um pouco, só, mas reparem bem. Aqueles dentinhos...  Uma associação, no entanto, é pouco para fazer juízo.
Fiquei sabendo depois que já tinha havido um antecedente, de modo que melhor será abandonar a prática antes que se transforme num hábito porque a coisa pode evoluir para outras mordidas e outras formas de ataques, e quando menos esperarmos o amor selvagem estará aceito e poderemos dizer que um jogador é mais gostoso do que outro; que um é melhor com molho e o outro, assado, é melhor que um gol.
Talvez a Fifa não aceite churrasquinho no campo, ou na arena, que é mais propícia, se conseguirmos esquecer que um dia arena também foi sigla de matadores. Mas quem sabe a Fifa também vai se abrasileirar depois dessa?
Simpatizo com Suárez, mas minha preferência foi para Cavani, que parece furioso mas talvez não seja, e vem ilustrar esse texto que parece sobre futebol mas também não é  E já começa rindo.

Isso porque, confidencialmente, conto-lhes: alguma coisa está acontecendo que passa longe da Copa, das confusões de sempre, do desentendimento mundial e das brutalidades religiosas. Alguma coisa tem me pacificado e posto, sem mais nem por quê, a adorar, cada vez mais, o sol, e então me ocorreu que não é a primeira vez e que sim, às vezes a divindade nos olha, nos apresenta um poema ou apenas uma sensação de estar que não se assemelha a nada parecido e que se é tão rara de ser vivida é porque talvez seja raramente percebida.


Uma sensação apenas. Um sentir-se bem, diferente, escolhido, premiado.

Por isso esse poema que recordo (e recorto). O poema pode não ser, mas a sensação que o criou foi melhor que os melhores beijos de todos os amores inaugurados.


SETEMBRO

não me ocorreu 
(ou talvez sim)
por medo
ou vergonha (um pouco)
dizer que sou
estou sendo
tenho sido
tenho estado
(perdão)
                    feliz

outro dia

e acordo ainda
perceptivelmente
(até quando?)
feliz 


* este blog não segue as normas da reforma ortográfica.

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