Ontem mesmo, 28, foi-se Sócrates. Como o filósofo, não veio para agradar. Manteve distância de tudo quanto não lhe interessava (que era quase tudo) e era econômico nos carinhos. Muitas vezes me arranhou e o faria mais se eu não descobrisse, em seu olhar fixo e profundo, a iminência do avanço. Eu o punia com a expulsão da cama e mais uns dois ou três dias de medo (meu).
Quando ele chegou, criei uma falsa expectativa de que pudesse ser como Hamlet, um outro gato que tive e que, esse sim, me amava. Mas Sócrates era de outra estirpe. E no fundo, era um pouco como eu, que amo sem gritar.
Verdade que era omisso, o meu bicho. Escondeu-se em situações de risco, e só aparecia muito depois, na maré baixa. Mas esteve comigo em momentos de comunicação zero com o mundo, em que passamos dias distraindo-nos um com o outro até o sol sumir. Ou na cama, esperando que a chuva desse trégua e pudéssemos buscar algum sinal de vida.
No mais, era a rotina. Olhávamo-nos, ele me pedia. Qualquer coisa, nada, às vezes. A minha atenção exclusiva, com certeza. E eu atendia ou não. Era muito ousado, esse Sócrates que povoou meus dias. Era lindo e o azul dos seus olhos está agora espalhado em todo o céu que o recebe, num paraíso de gatinhos, com muita água e comida, e sombra, e carinho no pescoço, revirando-se no espaço, as patas para cima, rolando, brincando entre nuvens. Bebendo água na mão de Deus.
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