31 de dezembro de 2012

MARAVILHAS


O calor, a doença, a morte, o vazio, um defeito no computador, o sangue fraco, o trânsito. Isso tudo foi dezembro. O mundo, o que era o meu mundo,  vai se esvaziando de gente e se enchendo de lembranças, de fotografias, de risadas que se perderam no passado mas às vezes ecoam, na intimidade do silêncio. 
Tudo bem, sempre há as vitórias nessa luta pela sobrevivência. Como viver sem bandeiras e estandartes? A causa da legalização deu seus passos e entrará, a partir de amanhã, no circuito oficial da representação política, graças à eleição de Renato Cinco - desde o início a figura que catalizou tantos adeptos. 
Pra quem pensa que maconheiro é deitado, saibam todos que uma grande convicção move o Vereador eleito, ao longo dos anos, planejando, executando e ainda administrando idiossincrasias, e assim conseguiu com que o movimento se alastrasse pelo Brasil. 
Também a galera que o acompanha é de gente forte, firme nas idéias libertárias. André Barros, um dos companheiros mais antigos e leais, além de advogado dos perseguidos revelou-se um talentoso articulista. Ainda com uma pegada de advogado, mas necessária, porque as pessoas demoram a compreender e também ignoram quase tudo. É preciso citar as leis, mas antes de tudo é preciso fazê-las, ou revogá-las. Renato Cinco estará lá, em terreno perigoso, presa de pressões e constrangimentos, mas estará lá. 
Eis a tal esperança, literalmente verde. 
E alegre. Não são mais os maconheiros temerosos e circunspectos do PT bebê. Esses foram extintos pela realidade. Hoje a repressão é outra. Um grupo festeiro fundou o bloco carnavalesco Planta na Mente, famoso ao nascer, como são as coisas hoje. São jovens, são bonitos, fazem seus estudos, trabalham e ainda têm tempo para a militância. 

Mujica, no Uruguai, também teve que dar um passo atrás, atendendo à maioria conservadora. Uma missão norte-americana esteve no Uruguai, sabe lá do que ainda são capazes. 
Os conservadores celebram a bandeira de que na Holanda o governo restringiu a venda de maconha aos estrangeiros. Um erro. Sempre haverá maneiras de um holandês descolar um troco e vender para os gringos, chamando primo e sobrinho pra aumentar na transação. A mente humana não tem barreiras quando quer alguma coisa. E é só para isso que existe a repressão: para estimular a idéia do convicto de burlar a lei e atingir o fim pretendido. Como os hackers, por exemplo. Esses, no entanto, são bem-vindos ao mercado.
Eu poderia pertencer a um movimento pelo fim do estupro. Mas como assim, o fim do estupro, a partir de uma educação machista e descabida? Nem a religião ou a lei, que ameaçam com a culpa ou a cadeia, resolvem o problema. Lavagem de honra, pura bobagem. A honra é manchada a toda a hora. Vamos ficando tisnados de tanta desonra. Quantas mulheres casadas não são estupradas regularmente por seus caros consortes? Mas essa luta precisa que as mulheres se levantem. É dura a caminhada.

Mas a luta pela legalização da maconha também abrange a luta pela  liberdade da mulher e a de todos os oprimidos. É a luta pela liberdade de alimentar, plantar e colher o prazer. Coisa que muitos não entendem.

Desejo a Renato Cinco que não lhe falte o bom senso e que isso não signifique perder a coragem. É preciso firmeza frente a bispos e pastores,  coronéis e poderosos de qualquer hierarquia.
Confira, quem quiser  ter opinião mais substancial sobre o assunto, o blog do André. Ser contra ou a favor por ouvir falar é pouco, muito pouco para formar opinião. 


E a poesia? Bem, está aí para quem quiser senti-la. Mas quando Ela escolhe o poeta, olha na sua direção, toca-lhe corpo e alma, ele sabe o que vale a pena na vida. O sentido da vida, sobre o qual muito se especula, é apenas sentir, compreender e aguardar. Ninguém sabe o que virá.

E a cidade? E o reveillón? Isso vocês podem ver ao vivo ou pela televisão.
O que só verão aqui é o texto magistral que fala de uma outra cidade, que só o poeta percebe.

Maravilhosa

* por Daniel Santos



Nada cala os tambores da cidade fatigada. Os dias entram pelas noites com insônia de profundas olheiras, numa convulsão requebrosa pelo divertimento a todo custo, ansiedade sem o cabresto do recato.

Houvesse um colapso, as tensões se aliviariam, mas recorrente é o frenesi que toma todo o sítio das promoções vantajosas, das produções milionárias, das platéias que se convulsionam roufenhas à exaustão.

Sempre prestes, incapaz de escapar ao incessante gerúndio, a cidade atrai turistas, forasteiros, curiosos e os imiscui na rotina da alegria ruidosa que preenche todos os horários, sem noção de prazo nem de limites.


Canta, dança, sua e emite à atmosfera eflúvios da própia alma, da sua inquieta essência. Assim, o delírio em suspensão volta a se depositar, grão após grão, sobre essa que desconhece descanso, tranqüilidade.

Quando a fadiga beira a ruína, o troar dos tambores anima criaturas quase esgotadas, sem licença para a pausa. E prossegue assim, o permanente show das multidões sem consciência do próprio desespero. 


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Eis aí. Aos meus caros apoiadores, amigos e leitores das minhas divagações, agradeço.
Ao jornal O Cometa, que me sustenta na sede do sonho de um jornal de verdade. 
A todos aqueles que, gentilmente, me chamaram para serem seus amigos em redes sociais, explico: não posso. Sou muito contida em minha intimidade, acostumada ao que chamam de solidão, e eu chamo de paz.
Consegui-a, em momento de desespero, num pacto com Deus. A qualquer vacilo, lembro da palavra empenhada e agradeço a vida que tenho, os amores que mereci ou despertei, os filhos que tive e os que me tiveram
E numa homenagem ao amor, à paz e à divindade eu, certamente, já apertei um.  

E para terminar esse texto que já vai comprido enquanto o calor aumenta, uma piada de maconheiro:

O cara estava indo pra casa, numa quebrada, quando surge o policial e pergunta: 
- Tá levando uma parada aí?

O cara, pego de surpresa com um polícia saindo da moita, responde:
- Ainda não.



...


9 de dezembro de 2012

DEUS ESTÁ SOLTO (Ítalo Rovere)

Alegrem-se todos, o sol voltou, Deus está solto.

E eu estou feliz porque neste final do ano de 2012 haverá dois lançamentos de livros de amigas, poetas de fé, acima de tudo. 
Astrid Cabral e Márcia Cavendish Wanderley lançam seus novos livros. Márcia autografa  A Idade do entendimento no dia 10, na Blooks; Astrid, Palavra na berlinda, dia 13, na Livraria do Bardo. 
As maçãs de antes é o título do livro com o qual Lila Maia venceu o concurso de poesia do Estado do Paraná e no dia 10 estará viajando para Curitiba para receber o prêmio. 
Todos sabem como é difícil a vida do escritor, e mais ainda do poeta, ainda mais se for mulher. Não basta que o poeta seja reconhecido por seus pares. Não basta que dedique todo o seu esforço para que sua voz seja ouvida, publicando em antologias, concorrendo a concursos, às vezes pagando as próprias edições em pequenas editoras. 
Os concursos, por sua vez, não facilitam. Exigem sempre inéditos. Enquanto a música pode percorrer todas as ondas e os quadros viajem para serem vistos, e os filmes vencedores de festivais concorram a outros,  e o ballet, e a ópera se repitam pelos séculos - do escritor é exigido o ineditismo. Como se aquele poema vencedor não pudesse e não devesse ser mil vezes executado, lido, ouvido. Os músicos têm até a sua "música de trabalho", que são as mais importantes, as de maior sucesso.
Na literatura, não. Poema ou livro que vence concurso não pode concorrer a outro. A trajetória do poema que gerou o agrado de todos os jurados é também a sua sentença de retiro.
Poema bom é poema morto, para os organizadores dos concursos. 
Além de tudo, o velho e alquebrado descaso do mercado editorial, que determinou num certo dia que poesia não vende. Mesmo num momento histórico de consumo excessivo, parece que o padrão não mudou.
É difícil para todos, e sempre mais para as mulheres.
Mas há um dia em que a estrela brilha, Deus passa por perto e acende uma luz na vida daquelas que não contam com facilidades, mas que se mantém resistentes e firmes em suas trajetórias diversas. 
Por isso abraço sinceramente essas três mulheres plenas que se comprometeram com o que há de mais sério e abrasador: o amor e a poesia.
E isso se torna mais importante quando se sabe que num mundo de homens, mesmo que as mulheres sejam maioria, ainda é pequeno, muito pequeno, o universo dessas estrelas não reconhecidas, mas que brilham porque esse é seu destino.
Por tudo isso estou feliz, e também por outros milagres que me chegam, diretos ou indiretos, 
que aprendi a identificar desde que passei a observar mais céu e lua. E amar, ainda mais, sol e mar.







ASTRID CABRAL 

Atraso de vida

Por causa da poesia
o feijão queima
o leite entorna
esquece-se o troco
vai a roupa do avesso
chora o bebê com fome
perde-se o trem.
Mas viaja-se.

Sabe-se lá para onde
que anônima nuvem.


No meio do caminho

No meio do nosso caminho
tinha também uma pedra.
Não a pedra do poeta
verbal abstrata alegórica.
Tinha sim, uma pedra renal
concreta crônica sólida.
Tinha uma pedra plural:
extraída uma, outra surgia.

Nunca esqueceremos o lar mudado em hospital.
Dentro do corpo tinha um cálculo
obstáculo à união carnal.
Tinha uma pedra no caminho
do paraíso real.


Com a palavra o poema

Não ponha outra música no verso.
Seria equívoco, seria excesso.
O poema pede silêncio.
Quer proclamar o próprio som.
É canção de outro universo.
Cordas? Bastam as vocais.
Ouça, sua música de outro tom
avança em cortejo de vogais
jorra da fonte dos fonemas.
Não destrone a palavra.
De outra lavra a música do poema. 





MÁRCIA CAVENDISH WANDERLEY

 Shakespeare


Ferozes na poesia como feroz no amor foi Lear.
Paixão, intensidade, medo, ultraje, obstinação,
nada lhes falta, 
a estes personagens criados pelo bardo
como disfarces de seu próprio ego. 
Inventor da estranheza e insanidade 
que carregamos como prêmios 
ingratos
à nossa humanidade.



EROS HOSPITALAR

Ela chegou com medo de morrer, 
ele tomou-a nos braços com carinho.
Tudo vai dar certo, lhe disse baixinho.
Deitou-a numa cama branca com cortina
e repousou a cabeça em seu peito, gravemente.
Pensou que fosse amá-la ali mesmo!
porém alguém gritou na cama em frente:
Está doendo !!!!!!!!!
Ele correu para outro paciente.



SUBMERSA


Dizer que a vida é sempre possível 
mesmo quando a terra está por cima 
hoje não me serve pra nada.
Não me anima ver Derinkuyu
cidade submersa 
não no mar, mas no sonho de homens que beberam 
o vinho do inverno sob caves, 
quando lá fora a primavera explodia.
Já me enganaram os fatos,  
extraí seiva da História 
embarquei desenganada no entusiasmo dos loucos 
ou de quem estava perto.
Agora prefiro o negror onde a verdade paira, 
e o coração não sonha mais.   
Quando setembro chegar,  
beberei com você o vinho do afeto sem espinhos
mas hoje, estou para poucos. 


Os poemas do livro vencedor ainda não foram divulgados. Mas esses que lhes dou são do também premiado
Céu Despido.

LILA MAIA







Relíquia

Feito um menino que guarda seus segredos num cofre profundo,
escrevo cartas que jamais enviarei.
Estou convencida de que herdei da minha avó Palmira
o mesmo silêncio de pôr o rosto onde chove muito,
de entrar na casa da infância pela janela.
Nunca acreditei naquele cigarro que permaecia horas e horas aceso.
E fui adestrando asas para me ter por inteiro.
O limite era não desaguar
nem ficar nu.

Feito um adulto que menino olha o espelho,
continuo molhando minha coragem
e me permito cantar um blue

Quase lamento

Desses sonhos mais simples Deus não sabe
Nunca sentirá o prazer de ter livros na estante
e da falta que fazem uma mesa, quatro cadeiras,
um colchão de casal
Ele não compreende aquela janela inquieta,
as paisagens que transbordam livres

Deus é o que há de mais interminável em mim: a dor
Mas eu bebo do cálice
como do pão
às vezes ofereço a outra face por amor

O tempo segue com seu fogo milenar
Eu passo o pente nos cabelos sobriamente
Sobrevivo diante dos mistérios,
e desta claridade que não salva

Meu anjo

Avança decidido pela porta da noite
Ajoelha-se como se precisasse conhecer
o sistema de minhas artérias
Depois descobre os pontos
onde me sinto limitada
e só a mim seu alvo fere
Se grito três vezes seu nome
o perdido é uma cidade que amanhece
Se sussurro, mais fome desfere

Meu anjo quase sempre pintado de vermelho
me arrasta para o tanto que não sei
Não é nenhum Gabriel
mas seu cheiro, seu corpo calcinado
de águas e mistérios
além dessas rajadas
tem pétala de flor aberta


Quarto alugado


Tudo tem a dureza de muitos degraus.
Um esgrimir que corta aquele feeling
de perceber encantamentos.
Até a cama não comporta o meu desejo par.
É ímpar a saudade dos livros espalhados na mesa.
Hoje, Clarice e Drummond continuam na mala.

E aquela voz que lapidava
escuridão e chama,
quando eu tinha o direito de dar
nomes ao silêncio, 
agora vive como se estivesse
olhando a presa.


...