31 de outubro de 2013

O ROTO E O ESTROPIADO

Pelo menos 649 pessoas já foram mortas pela polícia do Rio só este ano. Em maio houve 147 mortes, número recorde dos últimos dois anos, de acordo com os índices de criminalidade da Secretaria de Segurança do Rio. 



Quando soube que o Ministro da Justiça iria se reunir com os secretários do Rio e São Paulo e os representantes da polícia em geral para traçar estratégias ou o que isso signifique contra a ação dos "vândalos" nos recentes acontecimentos que sacodem o país, o pensamento que me veio foi o do título. 
O Ministro da Justiça, e nem falo na pessoa, mas no cargo, é o roto, do latim ruptu, o que se rompeu. No caso, o que se rompeu foi o emaranhado de leis, decretos, normas e, principalmente, interesses particulares que formam a teia burocrática graças a qual a Justiça não se concretiza. A demora, que se dá nos mais inverossímeis bolsões (e bolsos) do sistema, é elemento primordial para que ela não se cumpra. E justiça que tarda não é justiça, é injustiça, já dizia o velho Rui. No fio mais resistente da trama estão juízes, ministros, conselheiros, pastores, empresários, bispos, lobistas, livres pensadores para o crime e, naturalmente, os advogados.  É nessa subteia, ondulante, que se movimenta, lenta e camaleônica, a corrupção.

Os estropiados são os que, na banda mais suja do esquema, botam a cara pra bater, mas em compensação (sim, o bicho também rasteja por lá) têm tempo para pensar em negócios ilícitos sempre que se lhes apresenta oportunidade. Ao serem descobertos, passam para a milícia, que é a mesma coisa, só que ilegal. Isso significa que expulso da polícia e tendo "tomado gosto" pela vida de predador, não consegue mais sair do ramo. Extorquir e matar são práticas das quais não consegue mais se afastar. Um vício.
As UPPs vieram para ficar, dizem as autoridades. Ou vieram para garantir o avanço da Sky e a crença de que o pobre é a nova classe média? Ou vieram para matar mais de perto? Matar com "maior integração com a comunidade"? 
Li n´O Globo, o que sempre é suspeito, mas a ser verdade a declaração da Presidente de que "a barbárie de mascarados deva ser coibida por autoridades" penso que o topete não só subiu-lhe à cabeça como atacou o cérebro. Os tempos mudam, senhora presidente. Há alguns anos o regime não gostava de guerrilheiros. E as guerrilhas também mudam de forma. Qualquer jeito é jeito. Sempre há alguma fonte de revolta.
Às vezes essas coisas não podem ser definidas de início. O que as move é um sentimento comum, um foda-se, é tudo uma merda, não agüento mais, chega - comuns a todos, mas ainda mais na juventude, naqueles que nascem onde só conhece quem convive: a pobreza, a desesperança, a vida trabalhosa.
A mão arbitrária da polícia, o desdém da lei, o gasto fácil dos poderosos - tudo isso não tem fronteira na geografia do preconceito. Lembra Murilo Mendes: "Os pobres. Nós os fizemos assim".
Essa reunião, portanto, não dará em nada. A polícia, pelo que pude observar, tem medo. Não esperava, quem sabe, que um grupo de 50 jovens mal nutridos seja mais ousado do que um batalhão treinado e armado; que não saiba o que fazer em qualquer situação. Na dúvida, erra. Se informa, mente. Se atacado, corre. Se aborda, mata. 
O caso Amarildo é muito mais do que uma morte a mais. O caso veio mostrar que a polícia é refém de si mesma. Um homem apenas foi capaz de fazer calar 25 subordinados. Subordinados a quê? Ao arbítrio ou à lei?  De que teriam sido ameaçados pelo major Edson Santos?
Tantas perguntas. Desculpem. Eu só quero entender. 

(...)
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(caixões de primeira e segunda classe).

Carlos Drummond de Andrade 

DRUMMOND PARA SEMPRE

Sempre é bom lembrar que o dia 31 de outubro não tem importância, para nós, brasileiros, porque é o Dia das Bruxas, e sim porque é o dia de aniversário de um dos nossos maiores e mais queridos poetas, Carlos Drummond de Andrade. Digo isso, (e não é a primeira vez) porque nos últimos anos, até mesmo nas escolas, a festa é para as bruxas, evento importado da cultura norte-americana, que para nós nada deveria significar em comparação com a obra do poeta, ele sim, um mago no trato com as palavras.
No momento em que se conclui (afinal!) que o grande mal do país é a falta de educação seria bom dar uma olhada no calendário festivo das escolas. 

É pelo Brasil que transcrevo aqui um poema que nos serve. E talvez nos salve.



NÃO SE MATE


Carlos, sossegue, o amor

é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir

ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor,Carlos, você telúrico,

a noite passou em você
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, 
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão
barulho que ninguém sabe, 
de quê, praquê.

Entretanto você caminha

melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém
ninguém sabe nem saberá.

...

25 de outubro de 2013

A PAZ É VERDE


Quem é belo
é belo aos olhos e basta
Quem é bom
é subitamente belo


(Safo)

       


É comum dizer-se que alguém "está representando o Brasil lá fora". Mas a frase é dita sempre em relação a desportistas em geral, em razão dos prêmios que ganham em competições. Treinam, é verdade. São mais ou menos capazes. Alguns se destacam. Recebem medalhas. Fazem carreira e propaganda. 

Mas eu acho que quem está fazendo bonito lá fora é a "nossa" Ana Paula, presa pelo governo russo por acusação de pirataria. Que pirataria? Putin sabe o que é pirataria. Havia um pirata em casa que se chamava Gorbachev e nem por isso está preso. 

Putin se atrapalhou, na hora, como a polícia do Rio, que nunca sabe direito o que fazer em situações inusitadas (embora a polícia do Rio se atrapalhe até quando planeja para situações de ofício). Talvez não estivesse programado para eventos fora dos espionados. Seja o que for, será péssimo fazer uma confusão dessas quando outras guerras fazem uma louca dieta de engordar e emagrecer a economia à custa de sacrifícios do povo, sempre o povo. 
O que é o Greenpeace frente à Russia? Talvez tenha sido bom fazer barulho com isso, enquanto a poluição...


Por enquanto penso em Ana Paula, no seu olhar delicado de princesa humilhada levada à torre pela intolerância do inimigo do reino. Quem irá salvá-la? A Presidente Dilma, que é do tempo das armas em punho, mas também foi movida por ideais? Putin, de quem se desconfia de que seja humano? A ONU ahahah? O Papa, atormentado pelo fracasso de Lampedusa? Ou o Greenpeace prepara uma super ação para resgatar os ativistas? Que coisa formidável seria!  

Faço essas brincadeiras porque acredito que brevemente ela e mais os companheiros estarão de volta às suas casas. Acredito que não irá se sustentar tanta insanidade. 

Não sei vocês, mas eu me orgulho dela. É dessas campeãs que vou formando meu plantel. Nele não existem medalhistas. Não lhes importa o ouro nem a prata. Trabalham por convicção pela sobrevivência do planeta. Isso é crime?

Ana Paula é do time das minhas admirações, embora ela já deva saber que as causas que defende são perigosas, mesmo que se trate da paz na terra.

Espero que seu olhar delicado se mantenha por força da coragem; que a prisão, a humilhação, a dúvida com o futuro próximo a sustentem; que conserve a força dos místicos frente aos monstros que transformam pradarias em desertos, rios em lama, florestas em queimadas. E espero que possa, novamente, respirar os ares da liberdade. 
Penso também na mãe de Ana Paula, na sua apreensão, na tristeza pelo confinamento da filha. Penso (espero) que a sustente nesse episódio aquela alegria, aquele sentimento que foi anterior a tudo, que no início era medo, mas depois foi orgulho, em saber que sim, que um dia sua filhinha (será sempre a sua filhinha) tinha escolhido um caminho para a própria vida: a defesa da vida para todos.

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19 de outubro de 2013

UMA CRÔNICA EM CRISE

Venho do Leblon numa hora possível, em que os carros não se apossaram avidamente das ruas e não afastam a todos com seu poder de fumaça. Fui levar um exame ao médico. Achei vaga. Tudo correu bem. Já estou voltando, descendo o Cosme Velho quando ouço no rádio a informação de que o Sesc prorrogou o prazo para concursos literários. Eu, que nem sabia que havia concurso, me interessei. Há pouco tinha ouvido Vanessa da Mata cantando Boa-sorte. Por que não?
Já em casa procurei o regulamento. Várias possibilidades. Conto, crônica, poesia. Fui no de crônicas, que é a minha fase de agora. Prêmio Sesc de Crônicas Rubem Braga. De início, era apenas um regulamento a mais. Na participação eu me enquadrava.  Duas crônicas inéditas eu não tinha, mas poderia escrever. O tema: livre, porém as crônicas “deveriam conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”.  Deveriam?  
Prossegui na leitura. Preenchimento da inscrição determinando especificações: Word, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento duplo e alinhamento justificado.
Fiquei pensando na mão de Rubem Braga escrevendo suas crônicas eternas; em Drummond e Clarice escrevendo suas colunas, sem que ninguém sequer ousasse dizer sobre o que escreveriam; em João do Rio, sem o peso da formatação, em Sérgio Porto, seriíssimo, ou Veríssimo, filosófico; em Marilene Felinto, resistente - todos dando vazão à liberdade de pensamento, fiéis ao talento e à própria consciência.

A seleção, informa o regulamento, será feita por comissão composta por membros de notório conhecimento no campo literário. Ah, bom, isso me tranquiliza. Mas terá a comissão lido o regulamento? Saberão os seus membros que o tema é livre, mas a mensagem é determinada? Saberão que o ineditismo que o concurso exige significa a morte daquela pequena obra, daquele impulso que nasce por um dia, e como uma flor, morre ao entardecer?

O prêmio (ou a sentença?) não termina aí. Também tira do cronista os direitos autorais, com firma reconhecida em cartório e, para terminar, informa que os pobres prêmios em dinheiro, no valor de 2 mil, 1,5 e mil reais, para 1º, 2º e 3º colocados serão pagos em bruto, e deles serão deduzidos “os impostos em vigor”.

Primeiro pensei em escrever e mandar a crônica que publico agora. Pelo menos seria lida por alguém. Pelo primeiro que a lesse, quem sabe, que logo a descartaria. Depois pensei na firma reconhecida, no correio, e principalmente na rendição. 

Não, não seria eu a trair a crônica, imortalizada por tantos escritores geniais. Não seria eu, mesmo cronista menor, a conspurcar o gênero, a vender-me ao vendê-la aos “guardiões da cultura”. Não mesmo.

Aqui está ela, a quem me abraço. Digo-lhe que não me entregarei, que a amarei sempre e que já sei reconhecer, pelos termos, pela pompa, pela desfaçatez, os inimigos da literatura. Digo-lhe que será como quiser, em Trebuchet 14, espaçamento 1,5, alinhamento à esquerda. O título irá à esquerda, e não no centro. Sim, como queira. Farei exatamente como queira.
Sem negrito no título, está bem.


Agora explodem bombas. As notícias me soterram. Espero ter contribuído com alguns “elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”. 
E a sorte é sua, leitor solidário, se não escrevo, como o SESC permite, uma crônica de oito páginas. Oito páginas para uma crônica?


Felizmente, a comissão é de notório saber. 
Posso dormir, então. 
A bênção, Quintana, a bênção, Millôr, a bênção Machado de Assis, a bênção Vinicius e todos os cronistas do Brasil, que fizeram esse samba comigo.

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18 de outubro de 2013

DECÁLOGO DO CONTISTA

Horácio Quiroga
(1878-1973)

Em meio a discussões mundanas, onde o que mais se discute na literatura não é literatura, mas questiúnculas ligadas ao umbigo; mercado editorial, ao invés de arte; concursos que ainda exigem ineditismo, ao invés de buscar a divulgação - deixo-lhes aqui, como salvação ante ao naufrágio, o Decálogo do Contista, do escritor uruguaio Horacio Quiroga, escolhido pelo destino para a genialidade em sua obra e para a tragédia em vida.  



DECÁLOGO DO CONTISTA

I.  Creia em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov - como em Deus.

II.  Creia que sua arte é uma montanha inacessível. Não sonhe dominá-la. Quando isso for possível, você saberá.

III. Resista o quanto for possível à imitação, mas imite se a tentação for muito forte. Mais que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da personalidade exige paciência.

IV. Tenha fé cega na sua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que você deseja esse triunfo. Ame a sua arte como a sua mulher, dando-lhe seu coração.

V.  Não comece a escrever sem saber aonde ir. Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas.

VI. Se você quiser expressar com exatidão esse fato - "Um vento frio soprava do rio" - não há, na linguagem humana, palavras mais precisas que essas. Seja dono de suas palavras, sem se preocupar com suas dissonâncias.

VII. Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão as camadas de cor adicionadas a um substantivo fraco. Se você fizer o que for preciso, ele terá, por si só, um colorido incomparável. Mas você terá de ir buscar esse colorido.

VIII. Pegue seus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o final, sem deixar que nada o desvie do caminho traçado. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de resíduos. Tenha isso como verdade absoluta, mesmo que não seja.

IX. Não escreva sob emoção. Deixe-a morrer, e depois a evoque. Se você for capaz de revivê-la, terá chegado à metade do caminho.

X. Ao escrever, não pense em seus amigos, nem nas reações deles à sua história, pense como se o seu relato só interessasse aos seus personagens, e você fosse um deles. Não se dá vida a um conto a não ser dessa maneira.


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17 de outubro de 2013

OS VERME

foto do Estadão
Gosto muito de ouvir escutas telefônicas entre traficantes. Aprendo muito. Conheço palavras novas e reconheço outras, velhas, empregadas com outro sentido. Os verme, por exemplo, eu adoro. Tu tá nesse negócio, eu tô nesse negócio, tu corre pro teu que eu corro pro meu a gente taí pelo crime. 
Negócios, como vêem. Quer dizer que o contribuinte mantém uma sede própria para atuar no conflito de interesses Estado X Crime. Como numa novela. Quando se vê, são irmãos.
O único problema é que o policial jura prestar serviço à população. O bandido não jura nada. Por isso o policial é pior. 

O que eu gostaria de saber é como a Globo consegue as gravações sempre com exclusividade? Assim como planta provas, a polícia não pode plantar gravações? E quem melhor do que a Globo para fazê-lo?
Quem é que pode acreditar numa polícia que planta provas e ainda combina a estratégia por olhares e gestos, na frente das câmeras. Bando. De um lado e do outro, é tudo bando. 
E quem são os homens que deram tiros de revólver, escondidos na esquina? E o cara que estava no telhado da Câmara, que nunca mais se falou nele? Onde está? Quem é?

A polícia, meus amigos, não conhece nem o significado da palavra prevenir. A polícia vai com 600, 700 homens, e não consegue debelar a ação de 50. Como assim?
Por que a polícia não consegue fazer a tal ação preventiva? Os policiais deixam até queimar o seu material de trabalho, no caso recente do Rio e São Paulo, um carro e um ônibus.
Para onde estavam olhando os policiais que não viram (e não guardaram) os veículos?
Por que a polícia deixa as coisas chegarem a esse ponto?
O que é que está aí que eu não estou percebendo?
Por favor, me digam o que é preventivo. Será que eles pensam que é preservativo? Presiganga? Presilha?
Sou de opinião que quando policiais oferecem um carro para incendiar devem pagar por ele. Por que não? O funcionário público é responsável pelo material de trabalho que o Estado põe à sua disposição para cumprir seu trabalho. Se ele não cuida, paga. Simples. 


O que se sabe é que a essa hora algum homem, em algum lugar do Rio de Janeiro, está sendo preso, torturado e morto. Centenas de Amarildos sucumbem diariamente. Não são ninguém, esses mortos sem identificação. Quando a polícia marca e vai atrás, ele já sabe. Mesmo assim foge. Primeiro são os cachorros que latem sem parar. Ouve-se um grito ali e aqui que se aproxima. É os verme. Chegam perto. Pegam o fugitivo. Por alguns minutos se houve os gritos. Mais altos no início, depois enfraquecidos. A favela toda está alerta. Ninguém se mexe da cama. Um estampido finaliza a cena. O silêncio fica maior do que o céu onde se perdem os olhos do morto. Os acordados aplacam a taquicardia e finalmente dormem. Há que levantar cedo. 
Amanhã terá morrido um individuo. Possivelmente jovem, possivelmente preto e analfabeto. Com toda a certeza um brasileiro. 



  

12 de outubro de 2013

MULHERES E LITERATURA

No momento em que a literatura se faz manchete, à cause da Feira de Frankfurt e o escritor Luiz Rufatto se empolga e diz o que pensa, e Ziraldo se exalta, e Michel Temer etc e tal, e que se escreve e ouve falar sobre as minorias, de negros a gays, ninguém fala na única minoria que é, por acaso e estatísticas, a maioria - a das mulheres. Dentro dessa minoria ainda há uma subminoria, que não é vista por ninguém e só é reconhecida quando um milagre, que acontece para poucas, acontece agora com o Nobel de Literatura. Fora disso, a mulher continua sendo "incluída" e mal paga.

Pense aí, agora, no nome de seis (tá, então três), mulheres que, fora da zona de marketing, tenham sua obra lida? Pois assim é. E os estudos a respeito disso, quando são feitos, apontam para o fato, já observado antes por evidências: a maioria dos escritores brasileiros é formada por homens, brancos e de alto padrão. Se não há novidade, já mereceu o estudo.
A ditadura política acaba, ali e aqui, uma vez ou outra. A dominação física e moral sofrida pelas mulheres de todas as classes sociais e profissionais não acaba. Não teve Princesa Isabel que acabasse com ela. Não tem delegacia da mulher que resolva nem justiça que se faça. Se todas as mulheres torturadas "fora dos porões da ditadura" fossem receber indenizações ...   

De qualquer forma, a literatura vai sendo feita. A poesia de Rita Moutinho comparece mais uma vez com o irretocável, na forma e na paixão, Psicolirismo da Terapia Cotidiana,  uma corajosa reunião de poemas elaborados a partir de sessões de terapia. Para quem aprecia o rigor, Sérgio Paulo Rouanet afirma:  "Rita Moutinho tem demonstrado, ao lado de uma crescente densidade de inspiração, uma invejável mestria formal".Um ponto importante na sociedade dos homens, ainda mais os heróis da academia.  

Dois poemas de Rita

2.

Faz tempo que não respiro ar puro,

não me destino à natureza: recuo
por aleias emparedadas,
tentando arborizar pedras.
Inspiro e sou a musa avessa
explorando avidamente
aquilo que não aflorou:
certeza.
No poema (ansiolítico)
a bula nada estipula,
o rótulo nada rotula,
as palavras são meras palavras
até que subitamente
feras.

Minha depressão não é vale entre montanhas.

Mas vinga aquilo que vale, minhas entranhas.


Soneto da Dúvida nas Águas


Os dois remos parecem adormecidos

na travessia lenta para a cura,
e meus lábios molhados de gemidos
pingam máculas mis.Você se acura,
leva-me a perdoar certos pecados,
trazendo lassidão à a amargura.
Outros ainda me pesam represados
- não abri as comportas da censura.
As culpas, cracas fixas no meu casco,
não me deixam chegar à embocadura
da vida aquosa que, tolhida em frasco,
fez-me revolto oceano sem ondura.
        Ah ,quando poderei sã navegar,
        se sou a um só tempo barco e mar?







Lila Maia é outra voz que se expande. Terá uma segunda edição (Segunda edição de poesia, gente!) para o seu As maçãs de antes, já premiado pelo prestigiado Concurso do Paraná, Prêmio Helena Kolody. 
Por acaso o lançamento é na segunda, 14, no Severyna da rua Ipiranga, em Laranjeiras. Vale a pena conhecer uma poesia que é também de persistência e devoção.  

E aos exigentes que ouvirem algum ruído no fato de eu chamar poetas às mulheres, explico: é apenas uma questão de sonoridade.

Dois poemas de Lila

Uma oração

Deus nunca vai me perdoar: não vou  mais sofrer.
Um tigre salta por trás,
nenhum palavrão me vem à cabeça no primeiro ataque.
A salvação? Não rezar mais.

Aos poucos a beleza do corpo vai se encolhendo
o fraco respirar convertido em todos os pecados,
e as folhas preenchidas com poemas são filmes.

Meu melhor papel?
Ter dormido com cordeiros e anjos disfarçados.


A folha branca


Um tigre me espreita.
Fareja cada compartimento da casa
com ar inocente. Nada escapa.
Nem as altas prateleiras da estante.

Eu e a fera nos igualando, nos resumindo.

Quando suas patas me atingem
meu grito é de criança:
oh tigre
      oh criação



Deixo-lhes aqui um outro poema, que não vem do amor nem do grande exercício que se faz na direção do equilíbrio. Vem apenas do grande, tradicional, tenebroso e incompreensível conflito entre homens e mulheres.


De quem?


Nasceu. Que sexo tem?
Menina. 
Ah, também é bom né?
Dá pra enfeitar.

Quem é ela? A mulher do fulano.

Quem é ela? É a minha mulher.
Quem é você? Sou a mulher dele.
Quem é? É a tua mulher. 
Eu sou a mulher do sargento. 
Até a mulher do padre: o último é.
O que é que você quer agora, meu filho?
Eu quero ter uma mulher.
Na minha mulher eu posso bater.

E também posso matar a minha namorada e cortá-la

em pedaços,
porque eu sou ciumento
posso subjugá-la para o sexo 
desse ou daquele jeito
sempre que eu tiver bebido. 
E posso apontar-lhe um revólver
só para me distrair. 
Não sou ninguém, mas mesmo assim sou
um homem

...



ALICE MUNRO

A conquista do Nobel de Literatura pela canadense Alice Munro é algo que me causa dupla alegria. Primeiro porque é mulher, e esse é o nome. Depois, porque se trata de uma escritora de contos, meu gênero preferido, o que mais completa meu desejo e meu fôlego. O conto sempre é considerado um purgatório para os céus do romance. Nada a ver. O conto é o máximo.
Fiquei duplamente feliz, e estou ainda, em ver os resultados do trabalho de uma escritora de ofício. Quem segue escritora anos a fio e mais a família, o mundo, as décadas, essa é, de fato, escritora.
Não conhecia a autora, confesso, diletante que sou. Mas fui ao Google e li um conto.  Me bastó.

Estou feliz por esse momento em que ela, reconhecida no mundo dos homens em que vive, terá seu dia de glória, será premiada por uma trajetória de paixão e de trabalho.
Só as mulheres sabem o mundo em que se movem.
Além disso, Alice Munro é uma bela mulher de 82 anos, e tem um mar nos olhos.

A Companhia das Letras também deve estar muito feliz.



4 de outubro de 2013

A LUZ QUE VEM DO URUGUAY

Meu querido amigo, o escritor uruguaio Miguel Motta me escreve dizendo que apesar das frustrações, das dores, dos desenganos, ele crê na força da gente unida, crê que assim é que se avança. Apesar de que subimos dois degraus da escada e nos baixam um,  a Humanidade avança.  Admite que é um movimento lento, tortuoso, ineficaz, porém avançamos, repartimos algo do bolo, crescemos. O problema, diz ele, não está em que a força unida seja insuficiente e sim em que as outras forças, defensoras do estado de coisas, combatem desde sempre as mudanças que lhes arrancarão privilégios. Basta olhar o Rio da Prata e pensar nos ossos que dormem no barro, para compreender o íngreme, difícil e sacrificado caminho das mudanças.
Vendrá la luz, Helena, vendrá - ele me diz, o querido amigo, para me amparar. Mas Miguel é uruguaio. O presidente do Uruguai é José Mujica, é ele que traz a luz para esses tempos sombrios. E a verdade é que está lá porque os uruguaios são combativos de nascimento. Talvez por isso ele veja a luz que não vislumbro.



Em homenagem ao povo uruguaio e ao seu presidente, transcrevo aqui o discurso de Mujica feito recentemente na ONU, que repercutiu em todo o mundo. Poderia colocar apenas o link, mas não. Quero que fique aqui, junto comigo, para que possa mais facilmente voltar a ele, e me alimentar de esperança, que já vai escassa. Eis o homem, eis o discurso, eis a poesia - a verdade sem vaidade. 
Amigos, 
Sou do sul, venho do sul. Esquina do Atlântico e do Prata, Meu país é uma planície suave, temperada, uma história de portos, couros, charque, lãs e carne. Houve décadas púrpuras, de lanças e cavalos, até que, por fim, no arrancar do século 20, passou a ser vanguarda no social, no Estado, no Ensino. Diria que a social-democracia foi inventada no Uruguai.
Durante quase 50 anos, o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na realidade, na economia, fomos bastardos do império britânico e, quando ele sucumbiu, vivemos o amargo do fim de mudanças funestas, e ficamos estancados, sentindo falta do passado.
Quase 50 anos recordando o Maracanã, nossa façanha esportiva. Hoje, ressurgimos no mundo globalizado, talvez aprendendo de nossa dor. Minha história pessoal, a de um rapaz — porque, uma vez, fui um rapaz — que, como outros, quis mudar seu tempo, seu mundo, o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros são, em parte, filhos de meu tempo. Obviamente, os assumo, mas há vezes que medito com nostalgia.
Quem tivera a força de quando éramos capazes de abrigar tanta utopia! No entanto, não olho para trás, porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou para reverberar memórias.
Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina, pátria de todos que está se formando.
Carrego as culturas originais esmagadas, com os restos de colonialismo nas Malvinas, com bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrônica, que não faz outra coisa que não despertar desconfiança. Desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social, com a necessidade de defender a Amazônia, os mares, nossos grandes rios na América.
Carrego o dever de lutar por pátria para todos.
Para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, e carrego o dever de lutar por tolerância, a tolerância é necessária para com aqueles que são diferentes, e com os que temos diferências e discrepâncias. Não se precisa de tolerância com aqueles com quem estamos de acordo.
A tolerância é o fundamento de poder conviver em paz, e entendendo que, no mundo, somos diferentes.
O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo, à fraude e à corrupção, pragas contemporâneas, procriadas por esse antivalor, esse que sustenta que somos felizes se enriquecemos, seja como seja. Sacrificamos os velhos deuses imateriais. Ocupamos o templo com o deus mercado, que nos organiza a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.
Civilização contra tempo livre que não é pago, que não se pode comprar, e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza.
Arrasamos a selva, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos, porque somos felizes longe da convivência humana.
Cabe se fazer esta pergunta, ouvimos da biologia que defende a vida pela vida, como causa superior, e a suplantamos com o consumismo funcional à acumulação.
A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode mais que se perpetuar, e, como tal, delegou o poder, e se entretém, aturdida, lutando pelo governo. Debochada marcha de historieta humana, comprando e vendendo tudo, e inovando para poder negociar de alguma forma o que é inegociável. Há marketing para tudo, para os cemitérios, os serviços fúnebres, as maternidades, para pais, para mães, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo, tudo é negócio.
Todavia, as campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças, e sua psicologia para influir sobre os adultos e ter, assim, um território assegurado no futuro. Sobram provas de essas tecnologias bastante abomináveis que, por vezes, conduzem a frustrações e mais.
O homenzinho médio de nossas grandes cidades perambula entre os bancos e o tédio rotineiro dos escritórios, às vezes temperados com ar condicionado. Sempre sonha com as férias e com a liberdade, sempre sonha com pagar as contas, até que, um dia, o coração para, e adeus. Haverá outro soldado abocanhado pelas presas do mercado, assegurando a acumulação. A crise é a impotência, a impotência da política, incapaz de entender que a humanidade não escapa nem escapará do sentimento de nação. Sentimento que está quase incrustado em nosso código genético.
Hoje é tempo de começar a talhar para preparar um mundo sem fronteiras. A economia globalizada não tem mais condução que o interesse privado, de muitos poucos, e cada Estado Nacional mira sua estabilidade continuísta, e hoje a grande tarefa para nossos povos, em minha humilde visão, é o todo.
Como se isto fosse pouco, o capitalismo produtivo, francamente produtivo, está meio prisioneiro na caixa dos grandes bancos. No fundo, são o vértice do poder mundial. Mais claro, cremos que o mundo requer a gritos regras globais que respeitem os avanços da ciência, que abunda. Mas não é a ciência que governa o mundo. Se precisa, por exemplo, uma larga agenda de definições, quantas horas de trabalho e toda a terra, como convergem as moedas, como se financia a luta global pela água e contra os desertos.
Como se recicla e se pressiona contra o aquecimento global. Quais são os limites de cada grande questão humana. Seria imperioso conseguir consenso planetário para desatar a solidariedade com os mais oprimidos, castigar impositivamente o esbanjamento e a especulação. Mobilizar as grandes economias não para criar descartáveis com obsolescência calculada, mas bens úteis, sem fidelidade, para ajudar a levantar os pobres do mundo. Bens úteis contra a pobreza mundial. Mil vezes mais rentável que fazer guerras. Virar um neo-keynesianismo útil, de escala planetária, para abolir as vergonhas mais flagrantes deste mundo.
Talvez nosso mundo necessite menos de organismos mundiais, desses que organizam fórums e conferências, que servem muito às cadeias hoteleiras e às companhias aéreas e, no melhor dos casos, não reúne ninguém e transforma em decisões...
Precisamos sim mascar muito o velho e o eterno da vida humana junto da ciência, essa ciência que se empenha pela humanidade não para enriquecer; com eles, com os homens de ciência da mão, primeiros conselheiros da humanidade, estabelecer acordos para o mundo inteiro. Nem os Estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano. Sim, a alta política entrelaçada com a sabedoria científica, ali está a fonte. Essa ciência que não apetece o lucro, mas que mira o por vir e nos diz coisas que não escutamos. Quantos anos faz que nos disseram coisas que não entendemos? Creio que se deve convocar a inteligência ao comando da nave acima da terra, coisas assim e coisas que não posso desenvolver nos parecem impossíveis, mas requeririam que o determinante fosse a vida, não a acumulação.
Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá, nem coisas parecidas. Nos restam muitos sacrifícios inúteis daqui para diante, muitos remendos de consciência sem enfrentar as causas. Hoje, o mundo é incapaz de criar regras planetárias para a globalização e isso é pela enfraquecimento da alta política, isso que se ocupa de todo. Por último, vamos assistir ao refúgio de acordos mais ou menos "reclamáveis", que vão plantear um comércio interno livre, mas que, no fundo, terminarão construindo parapeitos protecionistas, supranacionais em algumas regiões do planeta. A sua vez, crescerão ramos industriais importantes e serviços, todos dedicados a salvar e a melhorar o meio ambiente. Assim vamos nos consolar por um tempo, estaremos entretidos e, naturalmente, continuará a parecer que a acumulação é boa, para a alegria do sistema financeiro.
Continuarão as guerras e, portanto, os fanatismos, até que, talvez, a mesma natureza faça um chamado à ordem e torne inviáveis nossas civilizações. Talvez nossa visão seja demasiado crua, sem piedade, e vemos ao homem como uma criatura única, a única que há acima da terra capaz de ir contra sua própria espécie. Volto a repetir, porque alguns chamam a crise ecológica do planeta de consequência do triunfo avassalador da ambição humana. Esse é nosso triunfo e também nossa derrota, porque temos impotência política de nos enquadrarmos em uma nova época. E temos contribuído para sua construção sem nos dar conta.
Por que digo isto? São dados, nada mais. O certo é que a população quadruplicou e o PIB cresceu pelo menos vinte vezes no último século. Desde 1990, aproximadamente a cada seis anos o comércio mundial duplica. Poderíamos seguir anotando dados que estabelecem a marcha da globalização. O que está acontecendo conosco? Entramos em outra época aceleradamente, mas com políticos, enfeites culturais, partidos e jovens, todos velhos ante a pavorosa acumulação de mudanças que nem sequer podemos registrar. Não podemos manejar a globalização porque nosso pensamento não é global. Não sabemos se é uma limitação cultural ou se estamos chegano a nossos limites biológicos.
Nossa época é portentosamente revolucionária como não conheceu a história da humanidade. Mas não tem condução consciente, ou ao menos condução simplesmente instintiva. Muito menos, todavia, condução política organizada, porque nem se quer tivemos filosofia precursora ante a velocidade das mudanças que se acumularam.
A cobiça, tão negativa e tão motor da história, essa que impulsionou o progresso material técnico e científico, que fez o que é nossa época e nosso tempo e um fenomenal avanço em muitas frentes, paradoxalmente, essa mesma ferramenta, a cobiça que nos impulsionou a domesticar a ciência e transformá-la em tecnologia nos precipita a um abismo nebuloso. A uma história que não conhecemos, a uma época sem história, e estamos ficando sem olhos nem inteligência coletiva para seguir colonizando e para continuar nos transformando.
Porque se há uma característica deste bichinho humano é a de que é um conquistador antropológico.
Parece que as coisas tomam autonomia e essas coisas subjugam os homens. De um lado a outro, sobram ativos para vislumbrar tudo isso e para vislumbrar o rombo. Mas é impossível para nós coletivizar decisões globais por esse todo. A cobiça individual triunfou grandemente sobre a cobiça superior da espécie. Aclaremos: o que é "tudo", essa palavra simples, menos opinável e mais evidente? Em nosso Ocidente, particularmente, porque daqui viemos, embora tenhamos vindo do sul, as repúblicas que nasceram para afirmas que os homens são iguais, que ninguém é mais que ninguém, que os governos deveriam representar o bem comum, a justiça e a igualdade. Muitas vezes, as repúblicas se deformam e caem no esquecimento da gente que anda pelas ruas, do povo comum.
Não foram as repúblicas criadas para vegetar, mas ao contrário, para serem um grito na história, para fazer funcionais as vidas dos próprios povos e, por tanto, as repúblicas que devem às maiorias e devem lutar pela promoção das maiorias.
Seja o que for, por reminiscências feudais que estão em nossa cultura, por classismo dominador, talvez pela cultura consumista que rodeia a todos, as repúblicas frequentemente em suas direções adotam um viver diário que exclui, que se distância do homem da rua.
Esse homem da rua deveria ser a causa central da luta política na vida das repúblicas. Os gobernos republicanos deveriam se parecer cada vez mais com seus respectivos povos na forma de viver e na forma de se comprometer com a vida.
A verdade é que cultivamos arcaísmos feudais, cortesias consentidas, fazemos diferenciações hierárquicas que, no fundo, amassam o que têm de melhor as repúblicas: que ninguém é mais que ninguém. O jogo desse e de outros fatores nos retém na pré-história. E, hoje, é impossível renunciar à guerra cuando a política fracassa. Assim, se estrangula a economia, esbanjamos recursos.
Ouçam bem, queridos amigos: em cada minuto no mundo se gastam US$ 2 milhões em ações militares nesta terra. Dois milhões de dólares por minuto em inteligência militar!! Em investigação médica, de todas as enfermidades que avançaram enormemente, cuja cura dá às pessoas uns anos a mais de vida, a investigação cobre apenas a quinta parte da investigação militar.
Este processo, do qual não podemos sair, é cego. Assegura ódio e fanatismo, desconfiança, fonte de novas guerras e, isso também, esbanjamento de fortunas. Eu sei que é muito fácil, poeticamente, autocriticarmo-nos pessoalmente. E creio que seria uma inocência neste mundo plantear que há recursos para economizar e gastar em outras coisas úteis. Isso seria possível, novamente, se fôssemos capazes de exercitar acordos mundiais e prevenções mundiais de políticas planetárias que nos garantissem a paz e que a dessem para os mais fracos, garantia que não temos. Aí haveria enormes recursos para deslocar e solucionar as maiores vergonhas que pairam sobre a Terra. Mas basta uma pergunta: nesta humanidade, hoje, onde se iria sem a existência dessas garantias planetárias? Então cada qual esconde armas de acordo com sua magnitude, e aqui estamos, porque não podemos raciocinar como espécie, apenas como indivíduos.
As instituições mundiais, particularmente hoje, vegetam à sombra consentida das dissidências das grandes nações que, obviamente, querem reter sua cota de poder.
Bloqueiam esta ONU que foi criada com uma esperança e como um sonho de paz para a humanidade. Mas, pior ainda, desarraigam-na da democracia no sentido planetário porque não somos iguais. Não podemos ser iguais nesse mundo onde há mais fortes e mais fracos. Portanto, é uma democracia ferida e está cerceando a história de um possível acordo mundial de paz, militante, combativo e verdadeiramente existente. E, então, remendamos doenças ali onde há eclosão, tudo como agrada a algumas das grandes potências. Os demais olham de longe. Não existimos.
Amigos, creio que é muito difícil inventar uma força pior que nacionalismo chovinista das grandes potências. A força é que liberta os fracos. O nacionalismo, tão pai dos processos de descolonização, formidável para os fracos, se transforma em uma ferramenta opressora nas mãos dos fortes e, nos últimos 200 anos, tivemos exemplos disso por toda a parte.
A ONU, nossa ONU, enlanguece, se burocratiza por falta de poder e de autonomia, de reconhecimento e, sobretudo, de democracia para o mundo mais fraco que constitui a maioria esmagadora do planeta. Mostro um pequeno exemplo, pequenino. Nosso pequeno país tem, em termos absolutos, a maior quantidade de soldados em missões de paz em todos os países da América Latina. E ali estamos, onde nos pedem que estejamos. Mas somos pequenos, fracos. Onde se repartem os recursos e se tomam as decisões, não entramos nem para servir o café. No mais profundo de nosso coração, existe um enorme anseio de ajudar para que o homem saia da pré-história. Eu defino que o homem, enquanto viver em clima de guerra, está na pré-história, apesar dos muitos artefatos que possa construir.
Até que o homem não saia dessa pré-história e arquive a guerra como recurso quando a política fracassa, essa é a larga marcha e o desafio que temos daqui adiante. E o dizemos com conhecimento de causa. Conhecemos a solidão da guerra. No entanto, esses sonhos, esses desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais que comecem a governar nossa história e superar, passo a passo, as ameaças à vida. A espécie como tal deveria ter um governo para a humanidade que superasse o individualismo e primasse por recriar cabeças políticas que acudam ao caminho da ciência, e não apenas aos interesses imediatos que nos governam e nos afogam.
Paralelamente, devemos entender que os indigentes do mundo não são da África ou da América Latina, mas da humanidade toda, e esta deve, como tal, globalizada, empenhar-se em seu desenvolvimento, para que possam viver com decência de maneira autônoma. Os recursos necessários existem, estão neste depredador esbanjamento de nossa civilização.
Há poucos dias, fizeram na Califórnia, em um corpo de bombeiros, uma homenagem a uma lâmpada elétrica que está acesa há cem anos. Cem anos que está acesa, amigo! Quantos milhões de dólares nos tiraram dos bolsos fazendo deliberadamente porcarias para que as pessoas comprem, comprem, comprem e comprem.
Mas esta globalização de olhar para todo o planeta e para toda a vida significa uma mudança cultural brutal. É o que nos requer a história. Toda a base material mudou e cambaleou, e os homens, com nossa cultura, permanecem como se não houvesse acontecido nada e, em vez de governarem a civilização, deixam que ela nos governe. Há mais de 20 anos que discutimos a humilde taxa Tobin. Impossível aplicá-la no tocante ao planeta. Todos os bancos do poder financeiro se irrompem feridos em sua propriedade privada e sei lá quantas coisas mais. Mas isso é paradoxal. Mas, com talento, com trabalho coletivo, com ciência, o homem, passo a passo, é capaz de transformar o deserto em verde.
O homem pode levar a agricultura ao mar. O homem pode criar vegetais que vivam na água salgada. A força da humanidade se concentra no essencial. É incomensurável. Ali estão as mais portentosas fontes de energia. O que sabemos da fotossíntese? Quase nada. A energia no mundo sobra, se trabalharmos para usá-la bem. É possível arrancar tranquilamente toda a indigência do planeta. É possível criar estabilidade e será possível para as gerações vindouras, se conseguirem raciocinar como espécie e não só como indivíduos, levar a vida à galáxia e seguir com esse sonho conquistador que carregamos em nossa genética.
Mas, para que todos esses sonhos sejam possíveis, precisamos governar a nos mesmos, ou sucumbiremos porque não somos capazes de estar à altura da civilização em que fomos desenvolvendo.
Este é nosso dilema. Não nos entretenhamos apenas remendando consequências. Pensemos na causa profundas, na civilização do esbanjamento, na civilização do usa-tira que rouba tempo mal gasto de vida humana, esbanjando questões inúteis. Pensem que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico, acima de todas as coisas, é respeitar a vida e impulsioná-la, cuidá-la, procriá-la e entender que a espécie é nosso "nós".
Obrigado.
Tradução: Fernanda Grabauska

3 de outubro de 2013

HOLOCAUSTO EM PROCESSO

"Educai as crianças e não precisareis punir os homens" 
(Pitágoras)


Do que eu me lembro, foi na ditadura militar que a educação no Brasil começou a ser destruída. Primeiro, por força das perseguições aos professores, pela repressão, e logo depois, pela falta de investimentos, o que facilitou o avanço do ensino privado. Junto com isso o ensino integrado foi abolido e as disciplinas foram transformadas em créditos, uma expressão mais condizente com o neoliberalismo. Essa mudança tinha como objetivos livrar o Estado das despesas com educação e impedir que os alunos cursassem juntos todo o período de aprendizado, no colégio ou na faculdade. Adotados os créditos, acabaram-se as turmas, as relações que se solidificavam no início dos cursos e duravam até que terminasse, permitindo a formação de amizades, a troca de idéias, de invenção do mundo, fundamentais para a formação do ser humano. Tudo isso que representa perigo para os Estado autoritários. E que não mudou com o fim da ditadura.

Agora, o que vemos? Professores nas ruas, pedindo aumentos mínimos e aceitando percentuais ainda menores, alunos desocupados e pais transtornados. Por que? Porque está tudo errado.

Pais e alunos é que deveriam estar nas ruas, inclusive pais e alunos de colégios privados, porque o seu dia chegará. O monstro nunca está saciado. 
No entanto, os pais não aparecem e os alunos se queixam do tempo perdido. Mas não vão buscá-lo, ao lado dos seus professores. 
Os governos, todos eles, pós ditadura, não conseguiram e nem tentaram reverter o estrago e, pelo visto, acreditam que ainda são capazes de ir levando, sem se importar com o fato de que o Brasil é, internacionalmente, ignorante e inculto. FHC também deu sua contribuição quando o seu ministro Paulo Renato de Souza, de odiosa memória, introduziu as televisões nas escolas, trazendo com elas Xuxa, os Trapalhões e outras aberrações, desmanchando espaços que eram destinados ao teatro e à música. Depois vieram os computadores, e agora parece que não é possível educar sem computador. Onde estudaram os grandes escritores, cientistas e artistas antes de existiremos computadores?
Talvez tenham tido bons professores.  

A cada vez que os professores voltam de uma greve, vencidos e humilhados, sabendo que não há futuro nem para eles nem para os alunos, mais os alunos os desprezam, mais os tratam mal, debocham e agridem. Afinal, esse é o exemplo que têm: professores pedindo esmola e sendo reprimidos pela polícia. Por que os alunos irão valorizar uma categoria que o próprio Estado rebaixa, moral, financeira e fisicamente?

Melhor mesmo é (que ilusão!) a reeducação, a reintegração, a "apreensão", a pena, a tortura, a morte prematura.  Tudo isso, no entanto, é muito, muitíssimo mais caro que salários dignos e escolas limpas. Mas, como vocês sabem, não é o que interessa. 

Troca-se a cadeira na sala de aula pela cadeira elétrica, que é onde nos levará a privatização do sistema prisional.  Como nos planos de saúde, sempre chega uma hora que não dá para todos. E então somos obrigados a reconhecer, como nos mostra a história, que

O povo
unido ou desunido
sempre será vencido


2 de outubro de 2013

MORTE AOS POBRES - UMA POLÍTICA PÚBLICA

De repente, não deu mais pra seguir mentindo. Amarildo foi morto pela polícia, e isso todo o mundo já sabia desde o início. Quem viu a casa de Amarildo, quem soube que ele tinha seis filhos e viu a mulher com quem estava casado não pode acreditar que Amarildo estivesse ligado ao tráfico. Amarildo era o boi, de apelido. Era o pau-mandado, um biscateiro que talvez até fosse ruim das idéias, como disse um vizinho. Amarildo era um nada. E foi por isso que foi escolhido por 10 policiais (DEZ!) para morrer na noite de 14 de julho. Talvez não tenha sido torturado por 10, mas é certo que 10 acobertaram o crime. Crime?Apenas uma brincadeira, assim como playboys matam índios, homens matam mulheres, nazistas matam gays. Normal.
Por que é que homens treinados e formados acham que podem se divertir matando negros durante a noite, ninguém sabe. Um prazer sádico, para quem passa a noite sem ter o que fazer. Rodando pelas ruas da cidade, errando o caminho. Por que esses amarildos têm que morrer todos os dias? Haverá uma cota de "merecimento" para os policiais que matam à noite, quando ninguém tem coragem de botar a cara na rua? Talvez haja um prêmio, mas só quando o morto não for descoberto.
A nossa guerra não é declarada mas é antiga. Vem da escravidão, jamais superada. A nossa guerra não tem datas nem heróis.  As vítimas não morrem em massacres como os do Egito ou da Síria. Vão morrendo sistematicamente, nas ruas, nos presídios, nas celas das delegacias, nos carros da polícia. Morrem, apenas, suspeitas por serem pobres, culpadas de serem negras. Tudo acobertado pelo Estado de direito, que também é o da força policial. Não há comunistas? Não há subversivos? Guerra às drogas. Não pegamos os traficantes grandes? Peguemos os pequenos. Não há criminosos? Vamos forjar um. Outra coisa hão de arranjar para matar, seguir matando. Isso é o que chamam de Paz Armada.

Quem estuprou e matou a menina Rebeca, de 9 anos, na Rocinha? Quem serão Amarildo e Rebeca amanhã?
Não sabemos. E a polícia dirá, até ser descoberta, que também não sabe.

FHC, O EX

Desculpem, mas não dá pra segurar. Quero ficar quieta (não julgarás) mas a realidade surge como uma provocação. Uma provocação risível, eu diria.
Quer dizer então que o filho de FHC, que lhe custou tanta dor de cabeça (no bom sentido) e alguns dinheiros, não é, na verdade, seu.
Que a mulher a quem sustentou durante quase 20 anos e, ao que se sabe, segue ajudando, não é, exatamente, a mãe que ele esperava, ou seja, a mãe do filho que esperava que fosse seu.   
Que todo o seu drama (uma comédia conhecida) foi devidamente abafado não só pela Globo, com quem o príncipe sempre teve relações mais do que amigáveis, mas por toda a imprensa brasileira, exceção da Caros Amigos, que divulgou o fato enquanto todo o mundo fingia que não sabia de nada. 
Talvez FHC tenha se envaidecido por ser pai em outra parceria (e com alguma diferença de idade)  e não tenha se preocupado com a prova. A vaidade, como se sabe, é a maior característica do ex-pai em pauta. Além disso, o exame de DNA ainda não estava tão na moda.

No Brasil, como se sabe, ninguém dá a mínima para o adultério, que corre solto nos palácios, por safadeza, às favelas, por falta de espaço. Mas não são todos os adúlteros que deportam as amantes. Coisa típica das velhas oligarquias. Verdade que a namorada aceitou. Talvez tenha dado risada ao ver o príncipe cair tão fácil. Talvez quisesse muito acreditar que o filho era dele, garantia de aposentadoria farta. Verdade mesmo, ninguém sabe.
O caso, portanto, não seria de admirar, não fosse o fato novo, de que o filho de FHC não é filho de FHC. Alguém competiu nessa empreitada. O filho concebido pode ter sido pré-concebido. Rár-rá-rá.
FHC, um estadista tão importante, quem diria. Ex-presidente, ex-pai. Só não será ex-corno. 
Mas será para sempre um grande babaca.