27 de junho de 2010

SARAMAGO NA ILHA - ALCIDES BUSS


Como escrever a todos que me respondem, por meio de comentários ou não? Fico tocada pela graça, muitas vezes lisonjeada. E até hoje só recebi uma resposta nervosa, de alguém que não quer nem ouvir falar em drogas. Pois muito bem. Existe até mesmo o direito de não querer ouvir, mas ignorar será uma posição inteligente? É preciso ouvir sobre tudo, ler, esmiuçar, e só então firmar uma opinião.
Mas ainda acho que o assunto drogas não se sobrepõe aqui a outros. Alguns hão de dizer: poesia é mais importante. Mas poesia é liberdade. E como consagrá-la escanteando alguns temas? Acho difícil.
De qualquer forma, não estou hoje para polêmica. Prefiro presentá-los com o poema de Alcides Buss, poeta catarinense leitor deste blog e de quem sou leitora. Assim são as coisas e assim se movimenta a comunidade poética.
Frente à poesia, nada mais a dizer. Fiquem com ele:

SARAMAGO NA ILHA

Alcides Buss

18 de agosto de 1999.
Sentamo-nos juntos, à beira-mar,
celebrando a arte da palavra.

Ali estavam escritores,
sonhadores incuráveis, e em fotografias revelaram-se felizes.

Falei dos mortos que protestam
em Antares, de Veríssimo.
Em silêncio, ele ouviu.

Falou dos vivos que se calam.
Em respeito, silenciei.

Então versamos sobre as ilhas.
A dele – foi dizendo – não tinha nada
da verde exuberância desta aqui.

A nossa – disse eu – tem agora
um pouco da distante Lanzarote,
um tanto das Canárias.

Brindamos à mútua nostalgia.
Formávamos, sós, o arquipélago
onde o mar é o verbo
que dia-a-dia nos redime
dos imensos vazios do existir.

www.alcidesbuss.com

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24 de junho de 2010

CONFLITO

a imagem traz homens casando com meninas.
elas trajam vestido de noiva e parecem caricaturas
de noiva como conhecemos. pequenas mulheres
entregues ao sacrifício.

nós, ocidentais cristãos
não toleramos diferenças
matamos índios, negros, judeus ou afegãos,
sem distinção de sexo ou idade

e queremos justiça para todos.


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18 de junho de 2010

LUTO EM VERMELHO


A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.
Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.
Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.
Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.
Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.
E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos". Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.
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16 de junho de 2010

SOBRE O URUGUAI


Idea Vilariño ( 1920-2009)


Ouço pela janela que a seleção do Uruguai goleou a da África do Sul. Fiquei pensando no barulho que os uruguaios estarão fazendo por lá, atravessando o frio de prata, berrando anos de pobreza, enlouquecendo ainda pelos gritos sob tortura que jamais se calaram e cujos reflexos há pouco elegeram Mujica.

Que vá essa alegria ao Uruguai, ele precisa e merece. É resistente, é duro, de ferro. E o olhar no horizonte, tanto e tanto, às vezes quer vulcões, montanhas, mares de verdade.

Por mim, de futebol só gosto de ver filmes sobrfe. O que é o resto, para mim, não interessa. Me interessa contar-lhes que andei por lá e de repente me olhava da estante do Museo Torres Garcia a Poesia Completa de Idea Vilariño. E essa poesia sim, é algo de que um país deve orgulhar-se (e se orgulha), porque lá se lê. Por isso trago Idea, e falo assim, Idea, como se sempre a tivesse conhecido, como se a tivesse visto caminhando pela casa, morrendo tantas vezes de amor fracassado, escrevendo, os olhos tristes, vagando, escutando a escada, em diária e constante despedida.

POBRE MUNDO

(Trad. de Sérgio Faraco)


Vão desfazê-lo
vai voar em pedaços
no fim rebentará como uma bolha
ou explodirá glorioso
como um paiol de pólvora
ou mais simplesmente
será apagado
como se uma esponja molhada
apagasse seu lugar no espaço.
Talvez não o consigam
talvez venham a limpá-lo.
E perderá a vida como a uma cabeleira
e ficará girando
como uma esfera lisa,
estéril e mortal
ou menos belamente
andará pelos céus
apodrecendo lentamente
como uma chaga só
como um morto.
..
CADA TARDE

Cada tarde que finda
formosamente morre
e cada um
cada um?
admira a formosura e sabe
sabe?
que é mais uma que morre
mais uma que se acaba
mais uma que se perde
mais uma que é nunca
mais uma
menos uma.
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ESSA ESTRELA

Essa estrela o que quer.
Ancorou na minha janela
quase à altura dos meus olhos
e ali está pulsando
ou fazendo sinais
ou sei lá
olhando
deixando que a veja
enorme como um punho
um punhado de luz
sobre a sombra suave dos pinheiros.
Olho-a com rancor.
Estou aqui a ler
um formoso ensaio
sobre a Alegoria
e essa estrela respirando
ofegando em minha janela
me instala de repente
na noite terrível do espaço
do espaço o abismo o infinito
como se queira
e me despoja e me deixa
errando às cegas
errando não
ah não
arrastada
numa veloz imóvel pura
respiração de gelo.
Arrastada levada
sobre esta chispa cálida
e suja e desvairada
que silva no escuro
lançada como um jet
para o nada para o nada.
E eu pobre de mim
lendo Alegoria.








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14 de junho de 2010

LÉLIA COELHO FROTA


( 1938-2010)


Morreu Lélia Coelho Frota. Quem conhece? Que jornal publicou o fato à altura da importância? Quantos críticos se debruçaram sobre a obra da escritora? Qual editoria realizou um tour de force para mostrar e registrar o valor e a abrangência de seu trabalho?
Eis a cultura nacional, o País onde os donos da cultura não estão interessados naquilo que forja a nacionalidade, que é justamente o conhecimento de um povo por si mesmo, o que Lélia fez durante toda a sua vida.
Os suplementos estão cheios de nomes norte-americanos que somos obrigados a engolir, traduções ridículas, perda de tempo, gasto de papel, livros que se vão sem que ninguém aproveite, com exceção das empresas que exploram o mercado da literatura.
Vá ao Google e saiba pelo menos quem foi Lélia Coelho Frota no cenário intelectual do País e até mesmo como representante do Brasil no exterior. Conheça o trabalho de pesquisadora no campo da arte popular, o seu papel à frente de importantes instituições culturais do País. Que foi poetisa premiada, amiga querida, trabalhadora incansável.
E a imprensa nos informa o quê sobre Lélia Coelho Frota?
Nada. É tempo de Copa, a paixão nacional, e nada mais existe. No entanto a paixão acaba. Mas a obra da artista não. Ela foi além do que pôde com todas as barreiras que à mulher são impostas. Esteve à frente e acima em inúmeros projetos e realizações. Construiu o que muitos não fizeram nem farão com igual talento e ética. Com igual sentimento. Para ela, Astrid Cabral escreveu o poema que segue. Os demais selecionei para vocês, são os poemas portugueses publicados no livro Menino deitado em alfa porque ler a poesia é uma forma de homenagear a autora, de mantê-la viva até quando não possamos mais. E passemos também.


Presentes de Lélia
Astrid Cabral

Uma rosa perpétua
a saudar o primogênito.

Campainha verde azinhavre
lembrança da Espanha.

Desenho de Milton Dacosta
embelezando minha sala.

Camafeu relíquia da Itália
para compor um anel.

Madona de Minas
talhada em madeira.

Caderno para anotar versos
em mimo pelo Natal.

O Divino Espírito Santo
artesanato de Paraty.

Livros, textos, conversas
telefonemas, mensagens
convites, encontros, festas.

E além calendário e espaço
a fonte constante do afeto
o doce calor do abraço
seu amor sempre presente.


Princípio
Lélia Coelho Frota


A morta abriu o dia radioso
com a cortina da sua despedida.
Partiu no meio os cabelos vagarosos
escorrendo ainda de lembranças,
vestiu o vestido precioso
e saiu à procura, sôfrega,
de outras tantas,
verdadeiras vidas.




Litoral (poemas portugueses)

Estávamos um diante do outro
como um só espelho de ouro.
Entre nós corria o rio rubro
e era tempo de despedida.

Portugal, Espanha ou as cícladas
é tempo, mas de frutas cítricas
para ter nas mãos a colhida,

ácida, consentida, súplice vida.

Liberdade

Passo pelo fio
de pérolas do Rossio:
não quero comprar flores,
quero ver o rio.




Uma dor


O vento soprava árvores da esquerda
Ao fundo, o menino tocava o violão preso no ombro,
como um pequeno navio adernado.
Uma dor
no mundo
rachava tudo fino e longe,
cinema mudo.

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11 de junho de 2010

ENFIM, UMA SENTENÇA


Chego de viagem. A Copa não me abala, não tenho nada com isso, embora a África seja estimulante para todos quantos lutam pela liberdade. Meu time é outro. Torço por um Brasil com boas escolas, crianças alimentadas, professores preparados, com salários à altura de educadores. Mas não vejo nenhuma perspectiva de levantar a cortina de sombra que cai sobre o futuro. Venho do Uruguai, e venho constrangida.

Mas não é sempre assim. De vez em quanto uma alegria dîminui o desassossego.

Depois de 10 anos chegou a sentença que condena a Ford a pagar ao Estado do Rio Grande do Sul cerca de 1,4 bilhão pelo não cumprimento do contrato assinado no governo Antonio Britto, em 1997, que antecedeu Olívio Dutra no Governo do Rio Grande do Sul, quando a montadora pretendia se instalar lá.

Olívio estava certo ao negar-se a desembolsar a segunda parcela prevista no contrato, mas o fato da Ford ter preferido a Bahia não foi só por isso. Uma quadrilha organizada (a mesma de sempre, FHC e asseclas) estava por trás de tudo, apoiada pela poderosa RBS, principal empresa de comunicação do Rio Grande do Sul, acusando Olívio até de ter nascido.

Olívio era bancário, cresceu politicamente no movimento sindical, foi preso pelos militares, andava de ônibus, não enriqueceu no cargo. E as oligarquias nunca gostaram da ascensão popular. No entanto, foi na campanha que elegeu Olívio que surgiu outra vez, como tantas, pela voz da militância, a esperança do Rio Grande em toda a sua força, como se as vozes viessem de longe, muito antigas, de muito antigas campanhas, empunhando bandeiras que se encontravam nas ruas, engrossavam fileiras rumo a um futuro diferente e possível.

A mentira de que o radicalismo extremado de Olívio tinha "mandado a Ford embora", desprezando empregos e investimentos foi espalhada por todo o Estado e fez, junto com outras calúnias, com que perdesse a eleição até mesmo nas prévias do partido em 2002, quando Tarso Genro foi escolhido, concorreu e perdeu para um apagado Germano Rigotto. Em 2006 Olívio concorreu e perdeu no segundo turno para Yeda Crusius, uma paulista sinistra que tem dado o pior de si. As denúncias de corrupção não fazem, no entanto, com que a RBS mexa um dedo contra ela. Podia ter caído como um arruda. Não caiu. É grande a força que a sustenta.
Olívio deve estar rindo discretamente por baixo do bigode, enquanto toma o seu chimarrão. Tranqüilo com a sua vida decente, incólume ante as negociações que fizeram com que fosse substituído por Márcio Fortes no Ministério das Cidades.
Talvez se lembre de uns versos, dos tantos guardados por sua prodigiosa memória e que certamente ajudaram a formar seu caráter.
São para Olívio Dutra que ofereço os versos do poeta Jayme Caetano Braun, um gaúcho como ele, que não compactuou com a vilania.



Está na hora
Jayme Caetano Braun
Composição: Jayme Caetano Braum/Pedro Ortaça


Eu penso enquanto mateio,
e mateando a gente pensa,
será que morreu a crença
da indiada do pastoreio?
Com três séculos e meio,
fazendo pátria e querência,
ou será que a incompetência
de uns e a má fé de outros
tiraram de índios potros até
o ar de independência!

Aprendi na mocidade,
algo que ninguém me tira,
que não há meia mentira,
tampouco meia verdade
e nem meia liberdade,
pois não pode ser cortada,
quem acha o rumo da aguada,
não morre de sede a míngua,
e quem fala meia língua,
termina dizendo nada!

Já é hora da indiada,
que a velha capitania,
dentro da democracia,
voltasse o que foi outrora,
gaúchos de ontem, agora,
sempre o mesmo sentinela,
a pátria verde-amarela
nasceu aqui nestes planos,
e os velhos taipas pampeanos
nunca se apartaram dela!

Meu grito de revolta
neste descontrole imenso,
mas um alerta ao bom senso,
e é sempre a melhor escolta,
para que o país de volta,
por si só se siga sozinho,
o patrocínio daninho, de fora,
nós não queremos,
deus permita, superemos,
'solitos' nossos caminhos.

Dentro da filosofia a qual
sempre nos filiamos
quando pátria nos tornamos
na essência e na ideologia,
o gaúcho de hoje em dia,
tem a mesma dimensão
e guardada a dimensão
entre presente e passado,
é o mesmo pastor soldado,
do início da formação.

Se as distâncias encolheram,
as inquietudes ficaram
se os tempos se transformaram,
as ânsias permaneceram,
e os centauros não morreram,
no sentir e no pensar,
o impulso de gauderear,
latente se transfigura,
na defesa da cultura
que ninguém pode esmagar.

Aí está o gaúcho atual,
muito mais do que pilchado,
alerta e conscientizado
de todo o seu potencial,
a transformação social foi feita,
ele permanece,
tem consciência, não esquece,
conhece a luz que procura
e sabe que a noite escura,
termina quando amanhece!

É hora depois da espera,
que haja uma volta por cima,
o povo, matéria prima,
merece uma primavera,
e os que manejam a esfera
encontrem uma maneira
p'ra que a nação brasileira,
não vá a tranco e solavanco,
pulando de banco em banco,
como coruja em tronqueira.


Imagino que muitos de vocês nem se lembrem desse fato da política rio-grandense. Outros não podem lembrar porque nem souberam. Mas eu passei por lá e senti que a sentença passou como um vento na alma dos gaúchos que ainda sonham que a justiça se cumpra.

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