16 de setembro de 2014

LUPICÍNIO RODRIGUES (1914-1974)



Há 100 anos nascia o compositor Lupicínio Rodrigues, o criador da dor de cotovelo. Como o poeta Mário Quintana, nunca quis deixar Porto Alegre. Foi lá que compôs e juntou as pessoas em torno da sua música. A cidade era sua terra e sua fonte. E sempre nos admiramos que a imprensa não tenha celebrado merecidamente esse centenário, embora hoje em dia essas celebrações tenham virado também comércio. Mas a obra está aí, na memória dos mais velhos e no encanto dos jovens. As dores de cotovelo não estariam completas sem Lupicínio. E também não acabam aqui.

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9 de setembro de 2014

SEXISMO RACISMO E MACHISMO


Enquanto a sociedade brasileira avança lenta e teimosamente para diminuir o peso do sexismo, do racismo ancestral e do machismo, (que ninguém combate suficientemente), no campo do entretenimento A Globo, a boazinha Globo que se empenha tanto na arrecadação para o Criança Esperança inclui na sua grade de programação o programa do Sr. Miguel Falabella, chamado "Sexo e as negas". As chamadas na televisão já levam a concluir do que se trata, e as cenas mostram mulheres negras aparentemente muito senhoras de si, mas na verdade usando o sexo para impor-se na sociedade, que se aproveita delas e depois ignora-as.

Nunca fui adepta do politicamente correto. Para mim, significa varrer para debaixo do tapete as coisas feias que pensamos mas que, na profundo de nós mesmos, não achamos certo expressar. Os inventores das políticas públicas então vieram com essa coisa de afro-descendentes, terceira idade, pessoas em situação de risco, deficientes visuais, etc. Penso que os nomes são muito menos importantes do que as ações. E como valorizar pessoas que se vêem corrompidas na televisão? 


O Governo, sempre muito ocupado, faz leis no sentido de diminuir esses abismos, mas para que servem? E quem as cumpre, se os negros ainda entram pela porta de serviço? Como acreditar que as mulheres ainda são vítimas de espancamento e morte todos os dias? Como humanizar uma comunidade degradada em que sexo é comida? 

A televisão, todos sabem, é o meio de comunicação de maior abrangência e perde feio para as escolas, que não sabem seduzir, com seus conteúdos estagnados, seus professores cansados e seus pátios de concreto. E agora, para piorar, com policiais infiltrados. Será que as mulheres negras se sentirão retratadas? Será que se orgulharão daquelas pessoas que as estão representando? Será que alguma delas sentirá um chamado inconsciente para a vida difícil? Onde estão as organizações pelo direito dos negros? 
A literatura do imenso Monteiro Lobato já foi considerada racista. Mas os livros foram escritos em outra época, bem diferente. O programa anunciado, no entanto, é para já, é atual, e contra ele ninguém se insurge? Eu também ia perguntar onde estão as organizações feministas, mas aí lembrei que o feminismo acabou. Enfraquecido o movimento, foi rápida a mudança. As mulheres deixaram para lá as conquistas possíveis e foram alisar os cabelos, botar botox e se atrapalhar nos saltos. 

Tudo bem. Podem dizer que isso é coisa de velha. Mas por ser mulher, mesmo branca, tenho muitas histórias de preconceito e violência no passado. Lutei minha pequena grande luta e me orgulho de tê-lo feito. Por isso é que essas coisas me ofendem. Sob o disfarce da comédia e do entretenimento reforçam-se os conceitos da dominação e cavam-se mais abismos. É triste saber que muitas mulheres ainda (e quantas!) são vítimas de exploração, no público e no privado. Os programas que pisam na cultura e na cidadania das minorias (que minorias? as mulheres são 52% dos eleitores) apostam numa sociedade partida - branco no preto.





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2 de setembro de 2014

IVAN JUNQUEIRA


Há um mês morreu Ivan Junqueira. Como assim, morreu? Se na segunda-feira mesmo o vi, com Antonio Carlos Secchin e Alexei Bueno, passeando em Copacabana, falando do tempo em que vivem e da poesia?

Não é todo o dia que vemos um trio desse quilate assim, misturado ao povo. Só podia mesmo ser um documentário. Mesmo assim, gostei de vê-lo, gostei do entusiasmo, ainda que contido, com que sempre fala em poesia. Gosto da sua voz cavernosa falando poemas, uma voz que parece vir da tumba; da extrema preocupação com a morte, com o mistério da morte que ele, um ateu convicto, não reconhecia.
Gosto de ver como defende a sua devoção à poesia metrificada que, ao contrário do que dizem os que a rechaçam, o faz sentir-se absolutamente livre, sem que o incomodem os limites do metro. 
Ivan Junqueira, jornalista de profissão, poeta, crítico e tradutor foi uma inteligência brilhante que passou por aqui sem receber o reconhecimento (e mesmo o conhecimento) devidos aos poetas de vulto, o que é comum. 
Depois que entrou para a Academia IJ ficou ainda mais sério, mais sisudo, mas seus companheiros sempre o acharam uma ótima companhia, e engraçada, com gosto pelas tiradas surpreendentes. 
A poesia não, a poesia é tão exageradamente soturna que em algum momento pode-se até achar (eu, pelo menos, acho, algumas vezes) uma certa graça na maneira como penetra nos temas mais íntimos e sombrios conservando uma postura intangível.
Muito mais coisas há que dizer sobre o poeta, mas isso o documentário já fez, ainda que tenha sido curto para tanta vida e obra. 

Até mais, Ivan Junqueira. E que te encontremos outras vezes. Nos livros, na memória, na calçada ou na tela da tv, e tua poesia estará ainda mais viva porque a morte está sempre em ação, esta que tanto te consumiu e da qual agora estás livre, assim como estás livre da vida, que tantas dúvidas e desassossego te trouxe, mesmo que tenhas vivido também alegrias. Para um poeta, viver é sempre um ato extremado.

ELEGIA ÍNTIMA

Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada.
Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite
apunhalou o sono de Deus.

(do livro Os mortos, 1964)


MORRER


Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.

(do livro O grifo, 1987)




Esse punhado de ossos

a Moacyr Félix

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esquilo e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.

(do livro A sagração dos ossos, 1994)