29 de agosto de 2017

CONDIÇÃO DA MULHER

Condição da mulher, por Helena Ortiz



Discute-se, no Brasil, onde o aborto é proibido, o estupro conjugal. Uma coisa está ligada à outra, é claro, porque desses estupros conjugais também nascem crianças. 
Há países que já superaram o estágio primitivo, que pune a mulher que aborta. Mas aqui não. Aqui a lucidez não aportou. Pode-se calcular, portanto, a multidão de mulheres que abortam, ainda correndo o risco de serem presas, de terem seus filhos na prisão, vivendo ali a primeira infância. É um risco. 
Por outro lado, tem a sorte. E a fé. Que tudo saia bem, que Deus me perdoe, mas o que é que eu posso fazer? Deus está vendo a minha situação. Ele vai me perdoar.
E lá se vai o quase bebê. Sofre menos do que sofreria se vivesse, o pobrezinho, de mãe pária, de pátria cruel.
Haverá, para cada uma, um porto que acolherá, na solidão absoluta, a dor do aborto?
Não, não há. É uma dor funda que se divide em duas: abortar ou não abortar. Tudo é profundo e triste. Tudo faz parte de uma política dominadora e ridiculamente estipulada por igrejas e governos – todos sexistas.
Todavia, a mãe também tem uma vida. Ela não tem direito de opinar sobre si mesma, ela a estuprada, ela a vítima?
A sociedade masculina repete cinicamente que as mulheres devem ser protegidas porque sem elas, a família, a sociedade, os valores morais, etc. É mentira. Desprezam-nas. Riem delas, das dedicadas esposas. Mesmo que algumas mulheres ascendam a postos importantes exclusivos dos homens isto será, inegavelmente, visto como concessão. Aceitam-nas porque nas ruas elas estão gritando, e estudando mais. Aceitam-na. Mas na sua ausência a chamarão “puta!” e “vagabunda!”. E o filho será sempre o da puta que o pariu, nunca do puto que fugiu.
A criança deve nascer, é o que dizem a Igreja e os moralistas de sempre. Não importa sob que condições emocionais, não importa que a mãe não tenha onde morar, nem tenha alimento para dar ao filho ou que o pai tenha ido embora. Não importa que à mãe não reste muita coisa a não ser a escravidão.
A proibição do aborto é apenas uma parte da farsa que não sai de cartaz: proteção à vida. Esquecem os legisladores que são sempre as mulheres (elas também significam vidas) que enfrentam as consequências da sua condição de grávida e abandonada. Elas formam uma multidão desorganizada que suporta submissão e martírio a que são obrigadas a bem de “pertencerem” à sociedade. Só que elas não pertencem à sociedade. Elas nem ao menos pertencem a si mesmas, se não podem decidir sobre os rumos da sua vida.
Em que súbito momento, lapso, hora má, com espanto ou horror, cada menina que nasce ou já nasceu, desde os tempos em seus inícios, terá entendido que a sociedade ainda a classifica como uma pessoa menor, mesmo depois das retratações da ciência?
Cada menina nascida viveu, inapelavelmente, o instante em que afinal descobriu: ainda se acredita que a mulher existe para servir.
Soa duro, soa triste, depois da grande ilusão do amor, das promessas, dos planos de casamento, do filme único e inesquecível que todas, tolamente, querem protagonizar.
Mas depois, passada a festa, as mulheres se defrontam com a sua “missão”: servir, cuidando, cozinhando e abrindo as pernas. A qualquer hora, à vontade do dono. Parece antigo? Nada é tão atual do que os segredos entre quatro paredes. Nada é tão sofrido do que suportar um invasor e esperar, passivamente, entre lágrimas, não um orgasmo, não uma maravilha do amor, apenas um estertor, que para a mulher é o alívio. Temporário, é certo, mas um alívio.
O homem vira-se para o outro lado e ronca, como o bicho que é. A mulher respira. Acabou a tortura. Sobrou-lhe esperma entre as pernas, dentro, fora de si. A angústia é toda. Engole a raiva e a humilhação. Precisa levantar. Precisa lavar-se. Daqui a pouco é manhã. Precisa trabalhar.  Deve seguir. Não pode, não deve protestar. Pode ser pior. Pode ser muito pior. E as crianças. Por que as crianças vêm para juntar inapelavelmente o que nunca deveria estar junto? Castigo sobre castigo. Nascimento, menstruação, estupro, parto, feridas sobre feridas. Sempre o sangue nos acontecimentos.
Pobre menina nascida para o mundo. Agora já sabe. Agora já sofre. Esta é a sua missão. Ser de alguém, pertencer a alguém. Poderá falar, sair, pensar ou vestir-se como quiser desde que o dono permita.  Para tanto só é preciso obedecer. Para tanto ela só precisa servir. Para ele basta ser vil. Eis a base da harmonia do casal.
A mulher não pertence à classe nenhuma, nem ao menos é classificável, como os infelizes dalits, na Índia, porque daqueles o destino está definido. No mundo das mulheres, não. Tudo é secreto, ela é negociada, vendida, comprada para depois chorar sobre os escombros dos sonhos: o casamento. Uma armadilha. Uma verdade mentirosa. Mas daí a saber, daí a rejeitar o amor, a criação de uma família (é assim que falam as mães das penitentes chamadas noivas) ... Eis a propaganda enganosa. Só que é tarde. Demasiado tarde. Agora é engolir em seco, arrumar o cabelo, pegar as crianças e ir em frente.  
Estranha espécie: a mulher procria e o homem é o seu predador.
As mulheres, no entanto, seguem na luta. E essa é uma luta com muitas mortes. No Brasil, 13 mulheres são mortas por dia. Outras tantas apenas apanham sistematicamente, até se tornarem uma das 13 do outro dia. Sem chance, sem saída.
As ações governamentais que pretendem conter essa violência não são suficientes nem sinceras. O sistema está impregnado de preconceito. Não só o trabalho, mas a palavra da mulher vale menos.
Somente agora, nos Estados Unidos e na Islândia, discute-se a obrigatoriedade de salários iguais entre homens e mulheres. Essa diferença é uma desonra, uma ofensa, um deboche. Esta lei não está escrita. É fruto apenas de um “costume” graças ao qual as empresas se locupletam ao mesmo tempo em que mostram às mulheres “o seu lugar”.
Alguém já viu empenho de homens no sentido de que suas colegas ganhem o mesmo que eles? Entra na pauta? Nem se cogita. As questões das mulheres sempre são secundárias. Isso é histórico.
Isso não acontece apenas em sociedades que castigam mulheres com base na religião e na fúria. Também nas sociedades ocidentais, onde, aparentemente, as mulheres alcançaram alguns direitos. Quais direitos? O direito ao assédio. O direito de usar terno. O direito de não ter família, de estar “disponível” como os homens para os negócios da hora. O direito à guerra. O direito a se tornar sexista. O direito à vingança através dos mesmos métodos? O que é pior, um homem ou uma mulher sexista?
Digo aparentemente porque estou falando de mulheres que estudaram, que alcançaram postos desde sempre guardados para os homens. Digo aparentemente porque ao serem aceitas também precisam se sujeitar aos gracejos, às mãos sujas, à certeza de que se ela não estiver presente será chamada “aquela vaca”, “a vadia”. A conquista de direitos acontece através do rompimento com os valores sexistas.
As ações governamentais que pretendem conter essa violência não são suficientes nem sinceras. Elas são parte do sistema que acha bom manter a mulher “no seu lugar”. Que não ousem. Eles logo se encarregam de denegri-la.
A outra dificuldade é que homens e mulheres não querem a mesma coisa. Elas querem paz, eles querem guerra. Elas querem amor, eles querem vitória. Elas querem ser livres. Eles não sabem o que querem. Não fosse assim, o mundo não estaria em máxima combustão.

A luta é permanente. De cada uma de nós deve brotar a coragem de pôr fim à dominação. É possível que esta mudança não seja de toda a sociedade, mas a libertação individual estará pesando nessa busca. 

27 de agosto de 2017

O dia em que o morro descer...

O dia em que o morro descer e não for carnaval
(Wilson das Neves / Paulo César Pinheiro) 

O dia em que o morro descer e não for carnaval 
ninguém vai ficar pra assistir o desfile final 
na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu 
vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil 
(é a guerra civil) 

No dia em que o morro descer e não for carnaval 
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral 
e cada uma ala da escola será uma quadrilha 
a evolução já vai ser de guerrilha 
e a alegoria um tremendo arsenal 
o tema do enredo vai ser a cidade partida 
no dia em que o couro comer na avenida 
se o morro descer e não for carnaval 

O povo virá de cortiço, alagado e favela 
mostrando a miséria sobre a passarela 
sem a fantasia que sai no jornal 
vai ser uma única escola, uma só bateria 
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria 
que desfile assim não vai ter nada igual 

Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga 
nem autoridade que compre essa briga 
ninguém sabe a força desse pessoal 
melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria 
senão todo mundo vai sambar no dia 
em que o morro descer e não for carnaval

...

1 de agosto de 2017

PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE TUDO

Aconteceu, afinal, o lançamento (mais um chamamento) do livro PRECISAMOS CONVERSAR.
A noite foi absolutamente harmonia. Estavam os amigos de sempre e os novos, que sempre há, e crianças, que estão sempre a chegar. Teve abraços, espantos e alegria. Poesia, discurso e a certeza. Precisamos continuar. Precisamos ter mais momentos como aquele em que concordamos sobre a necessidade de estarmos juntos, de não nos separarmos e nos encontrarmos não só pela poesia, mas por nós mesmos, para que busquemos no outro, naquele que afina conosco, um suporte para enfrentar o que acontecerá a mais nesse nosso País que agoniza.
Agradeço a todos a presença, a participação, o convívio. Tudo isso se faz necessário como se nos juntássemos, como antes, em aparelhos de resistência fazendo frente ao poder usurpador.

Por pertinente, deixo aqui um poema do livro.

alternância

inútil celebrar vitórias
que consagram só a vaidade
celebremos também os fracassos

passada a primeira frustração
logo ali desponta
a fria análise dos fatos

e eis que vislumbramos a vitória
que se mostrará novamente
provisória