Houve Copa? Já ninguém se lembra.
Naquele tempo fui ao pampa, cujas fronteiras são linhas imaginárias, uma terra só, como no livro de Aldyr Schlee, uma terra a que pertencem todos os gaúchos, muito, muito antes das fronteiras e das cercas de arame farpado. A planície, o pôr-do-sol, o frio, o frio.
Mas quando se chega de viagem, tudo não é mais. Parece até um sonho o que foi vivido há tão pouco tempo, a realidade com a qual convivemos durante dias: ruas, clima, idioma, pessoas que se tornam conhecidas, que passam a nos cumprimentar. Tudo vai se diluindo na memória.
Mas tem uma lembrança que não quero deixar de registrar: estar cara a cara com a liberdade.
Cheguei muito cedo a Montevideo. Fui de ônibus de São Paulo até lá. Não queria me aborrecer com revistas em aeroportos. Detesto ser revistada em aeroporto e muito por causa disso vou dispensando os aviões. Um frio de dois graus e o ônibus parado na alfândega, horas, nada acontecendo, só homens caminhando, no frio, todos com a cabeça enfiada no pescoço, como se adiantasse. E ainda mais quatro cachorros farejadores e feios, daqueles de corpo gordo e pernas curtas e finas. Que merda, pensei. Mas então o ônibus saiu, afinal.
Em Montevideo a entrada no hotel era só às 14h. Deixei mala, tomei café e saí pra 18 de julho rumo à feira da Tristan Narvajo. Longe, para quem está com frio. Mas era preciso, além de tudo, fazer hora.
Domingo, o centro vazio. Caminhar, caminhar, o vento cortando pele e lábios, até chegar às mesmas bancas de sempre, nessa hora apenas poucas armadas. Fui até o fim, andei pra lá e pra cá à procura de uma nesga de sol que fosse, mas o sol não vencia o frio.
Na volta já havia bancas arrumadas e foi quando vi umas coisinhas com a folha da maconha: cinzeiros, cachimbos, maricas, quimeras. Finda a compra perguntei: e o produto? Quer também? perguntou o vendedor ao lado (que era artesão de Uberaba) Eu disse que sim e ele me mostrou, dentro de um pote de vidro, uns camarões que há tempos eu não via. Quer fumar? me perguntou o outro. Agora pode. Quer dizer, eu e o amigo aqui já fumamos há 40 anos, mas agora pode mais.
Ele fechou um baseado ali mesmo, fumamos, a maconha era boa, eu fiquei por ali, o povo chegando, o sol demorando, um frio de matar, una charla. Ele me disse que estava indo para Punta del Diablo, se eu queria ir... Eu? Presa às reservas e às datas? Me despedi e segui meu caminho. Que caminho? Sozinha em Montevideo, um frio de lascar, os uruguaios vendendo coisas inacreditáveis ou trocando entre si as coisas velhas que se acabam, mas continuam à venda.
Caminhei muito naquela manhã, agarrada às minhas valiosas compras, aproveitando efeitos que um café ou uma cachaça não me dariam. E nem poderiam. Estava tudo fechado.
Perto do meio-dia achei um restaurante. De cara tomei dois chocolates espessos. Depois vieram os chivitos. De postre: torta de maçã. Tudo junto para aliviar o frio, a fome e a sede.
Perdi a vez em Amsterdam, mas ao Uruguay eu fui. E depois: Parque Rodó, Rambla, Malvín, Pocitos, porto. Tudo livre, tudo limpo.
Agora vejo Dilma de mãos dados com os evangélicos. Cabeça e pés voltados para o passado. A cabeça quente com a pressão dos votos. Onde está o ímpeto revolucionário? Só houve, desde aquele tempo, um ideal a alcançar? Como se o homem não fosse uma máquina de querer...?
Onde está a vontade de acabar com a guerra às drogas, (a que chamam a guerra aos pobres) a prisão arbitrária, o abuso de autoridade, a milícia, a tortura nas cadeias, a desumana superlotação?
No Uruguay, que eu saiba.
Quem tem essa coragem?
Pepe Mujica, que eu saiba
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exelente tu texto te felicito
ResponderExcluirdia desses vou também. a primaira e única vez que estive no Uruguai, foi em 1980, eu tinha 15 anos e acompanhava meu pai, servindo de "disfarce", que foi participar de reuniões suspeitas de advogados de esquerda… foi uma viagem engraçada, porque ele esqueceu o dinheiro e desembarcamos totalmente duros...
ResponderExcluirOi, Helena, gostei do blog e gostei muito das duas últimas postagens. Abraços, Zé Bastos
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