28 de fevereiro de 2011

VIDA CACHORRA


Por que vida cachorra? Por que não "vida de cachorro", que é o que se usava para designar uma vida perdida, de fome, de abandono e solidão? De ataques perversos, às vezes, sem razão aparente. Vida de quem anda na rua, sem lugar certo, sem saber de amanhã.

É que os tempos mudaram muito. A vida de cachorro agora é luxo. Já a vida cachorra significa ainda menos, que ela foi rebaixada para o gênero feminino, onde se destaca mais o que é viver com a força do nada, pensando em coisas que não são próprias, deixando-se levar apenas pelos acontecimentos, que é o que acontece hoje com as mulheres.

As cachorronas aceitam seu papel. Não o discutem e vão até as últimas consequências.

Mas um dia a casa cai : incesto, aborto, despejo, expulsão, alcoolismo, prostituição - a tragédia usual de milhões de janaínas, suelis, e suellens.

Os homens também sofrem, os pobres homens pobres. Uns são jogadores de futebol. Elas são as mulheresquequeremcasarcomumjogadordefutebol.


Tudo isso é para falar do livro de Mariel Reis, VIDA CACHORRA. Será que a vida ainda tem lugar para a ficção? Em Mariel, tem. Trata-se de um escritor de verdade, salvo pela literatura, a quem corresponde igualmente, uma vez que é também seu dedicado divulgador. Lê tudo, comenta tudo, faz contatos e cria laços. Grande leitor, escritor inquieto e talentoso, Mariel está aí tomando lugar, com honra, entre os novos contistas brasileiros. Desde Linha de Recuo, de 2006 a John Fante trabalha no esquimó, de 2008, trabalha sem parar. O resultado vem. Os 12 contos de Vida Cachorra são tacadas difíceis de aguentar. Vê-se logo que as feridas são feias. Há que suportá-las e ir em frente, ou entregar-se. Mas os personagens de Mariel se entregam por paixão e deixam sangrar.

Depois de publicar uma série de poemas na plaquete Cosmorama, em 2009, surpreendentes poemas que produziu num espaço curto de tempo, poemas que chegavam em sonho, ele escrevia e mandava para os mais chegados, Mariel volta, agora, aos contos, seu gênero preferido, com o texto mais firme, mais enxuto. As palavras precisas, as falas absolutas. Não há lugar para sobras e gordurinhas. Escrita resoluta, sem vacilos, de quem perdeu todo o medo. Aprendeu na luta. E há diferença entre Dalton Trevisan, Marcelino Freire ou Rubem Fonseca, de quem Mariel traz referências e influências. É que ele sabe por dentro do que está falando.


Aí está. Essa opinião não é só minha, eu acho, porque o livro vendeu bem no lançamento, num sinal evidente de que a qualidade do autor já se alastrou. E que siga!
...

3 comentários:

  1. adorei o texto, helena!
    deu até medo da força deste livro!

    amei essa frase: "É que ele sabe por dentro do que está falando".
    Recentemente até falei sobre isso no Estado de Emergência, num textículo que transporto para cá:

    Há poucos dias discuti com o Diego e com o Elton sobre o significado de inspiração. Diego estava falando que o Caetano Veloso se inspirou no Artic Monkeys para o último álbum; e se você for ouvir, a única diferença é que tem guitarra, mas é o Caetano de sempre. E falamos também sobre a diferença entre a experiência que traz uma inspiração para escrever, o autor que te inspira a ser escritor, e o autor que te inspira a escrever certa coisa (esses dois em geral andam juntos, mas pode haver o autor detestável que te inspira uma estrutura ou tema). O Seba já havia me falado que embora o autor saiba onde se inspirou (e que pode lhe parecer cópia), o leitor sabe onde está o autor. Amém.

    bjones!

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  2. vida cachorra é o feminino de mundo cão, mas sem suipa nem petshop. tão bem descrita a literatura desse mariel que chego a ouvir sua humana ladradura em ecos perturbadores pelo vale dos miseráveis a convocar-nos para a reunião da matilha. ladremos, pois, todos juntos, que um novo valor se alevanta nas letras nacionais. uauuuuuuuu !!!

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