Caros amigos, dei-lhes folga no mês de outubro. Terá sido porque não aconteceu nada? Aconteceu muita coisa, mas como são as coisas de sempre, me abstive de comentá-las. O mundo vai ficando muito repetitivo, e segue no caminho da mediocridade - é possível? Venho, no entanto, com uma novidade formidável. Trata-se do livro de estréia de Alexandre Guarnieri, CASA DAS MÁQUINAS, que a Editora da Palavra revela aos leitores que querem, antes de tudo, acreditar que sim, o novo é possível, embora cada vez mais raro.
Anos atrás, quando li pela primeira vez a poesia de Alexandre Guarnieri fiquei impressionada. Talvez não tenha nem entendido, de pronto. Mas me valeu a intuição. Por algum motivo que nem eu sabia, tinha certeza de que estava diante de uma coisa nova, bem construída e, além de tudo, (fui ver depois) absolutamente poética, profunda, bela e terrível.
Não é leitura para quem pensa que conhece tudo. Há que seguir. Vai aqui a instrução do autor, contida na contracapa:
tome o livro ao alcance do olhar, ( a leit- / ura é o combustível), tome-o pois, à mão,/ o tal dispositivo, livro ( é no bunker de/ neurónios o mistério, à senha ), que ninguém sabe, ainda, ao certo, ao torque/ da chave na ignição , se ligará ou não
tome o livro ao alcance do olhar, ( a leit- / ura é o combustível), tome-o pois, à mão,/ o tal dispositivo, livro ( é no bunker de/ neurónios o mistério, à senha ), que ninguém sabe, ainda, ao certo, ao torque/ da chave na ignição , se ligará ou não
O livro de Guarnieri impressiona não só pelo conteúdo, mas também porque o objeto livro é também uma criação do autor. Não só a Casa produz poesia como cada engrenagem foi observada, detalhadamente azeitada para que tivéssemos a chance de ver a máquina, várias máquinas, cada compartimento de cada uma delas, em pleno funcionamento. A organização, seleção, as imagens, o projeto gráfico - tudo é obra do poeta. E ainda traz às páginas temas, palavras e procedimentos que poucos ousam utilizar, dando-lhes nova face, despertando-lhes novo sentido.
Outros já fizeram? Tudo o que fazemos é feito do que os outros já fizeram, se formos inteligentes o bastante para captar o que nos salva ou o que apenas nos serve. Guarnieri soube fazer, e não sou eu, uma diletante, que garanto. Poetas e conhecedores indiscutíveis, Marcus Fabiano Gonçalves, autor do texto da orelha e Mauro Gama, poeta e crítico, autor do posfácio, me dão razão.
Eis o que escreve Marcus Fabiano Gonçalves:
Eis o que escreve Marcus Fabiano Gonçalves:
Das esferas celestes ao computador, de Ptolomeu ao robô, o homem pensa o mundo como máquina. Mas como pode a máquina, que é morta, servir de metáfora da vida? Parte dessa resposta está no livro de Guarnieri: pertencendo ao domínio do movimento, a máquina empenha-se em aproveitar a energia, tal como o corpo humano. Recém as mão do hominídeo deixavam o solo e já estavam dadas as condições para a aparição da ferramente e da linguagem: o gesto, a ostensão, a figura rupestre, ímpetos de comunicação da técnica e das coisas, dos sentimentos e das sensações. De fora o homem se inventava um dentro e não tardaria para que o artesanato forjasse arranjos cada vez mais complexos, capazes de moldar a matéria em sistemas de partes combinadas pelo acúmulo de sucessivas conquistas da inteligência e sensibilidade.
A máquina subrodinou o mundo à transformaçao pelo homem, que, mudando o seu entorno, mudou também a si mesmo. Da lança à alavanca, do utensílio ao aparelho, as idéias de causa e finalidade aperfeiçoam-se na noção de funcionamento, esta espécie de vida das máquinas que, à diferença do homem, nascem na eureka e morrem no ferro velho desde sempre sabendo do seu para quê. Há nos poemas de Guarnieri uma insólita capacidade de maravilhamento com essa argúcia dos engenhos, mesmo quando não possamos compreendê-los completamente. Há um fascínio perscrutante, uma atenção agudíssima vislumbrando por entre parafernálias a eclosão daquele instante em que a mão, a mente e a circunstância juntas inventaram ou descobriram a ferramenta.
(...) Hoje, entretanto, as máquinas colossais também se tornaram mais que minúsculas: nanométricas, moleculares. A química e a física são as novas engenharias dessas máquinas mínimas. Aparentemente sólidas e tão suavemente tácteis elas doravante em nada lembram a pesada empunhadura do machado de sílex.
Do botão à tecla e desta ao ícone digital (e logo à voz, ao olho e quiçá ao pensamento) nossas bugigangas de efêmera elegância envelhecem tão rapidamente que suas carcaças obsoletas soterram a memória da graxa dos motores e do carvão que tisnava o rosto dos mineiros no alvorecer da Revolução Industrial. Tudo isso parece já pertencer a um passado remoto e longínquo. Todavia, apenas parece. Enquanto o homem tiver corpo, a máquina não morre nem se torna virtual. Ela somente se oculta, prolonga-se em próteses, protege-se em caixas e carenagens, aloja-se em compartimentos no ventre da urbe ou circula subterrânea por suas artérias tubulares. Ela enfim sobrevive na Casa das Máquinas, recinto de acesso restrito ao qual somos agora convidados por esse formidável livro de Guarnieri. Em poemas de sofisticado alcance rítmico e imagético, ele revela parte desse enigma das máquinas a nossos espíritos tão precariamente fascinados por mecanismos e automatizações, signos maiores da própria inconsciência nossa da cada dia. Afinal, é do paradoxos de uma robusta e delicada maquinaria da linguagem que Guarnieri nos fala. E como ela é blindada por um invólucro viscoso contra as investidas de decifração pela reflexividade, só mesmo à poesia ela porderia entreabrir-se assim, majestosa e circunspecta.
A máquina subrodinou o mundo à transformaçao pelo homem, que, mudando o seu entorno, mudou também a si mesmo. Da lança à alavanca, do utensílio ao aparelho, as idéias de causa e finalidade aperfeiçoam-se na noção de funcionamento, esta espécie de vida das máquinas que, à diferença do homem, nascem na eureka e morrem no ferro velho desde sempre sabendo do seu para quê. Há nos poemas de Guarnieri uma insólita capacidade de maravilhamento com essa argúcia dos engenhos, mesmo quando não possamos compreendê-los completamente. Há um fascínio perscrutante, uma atenção agudíssima vislumbrando por entre parafernálias a eclosão daquele instante em que a mão, a mente e a circunstância juntas inventaram ou descobriram a ferramenta.
(...) Hoje, entretanto, as máquinas colossais também se tornaram mais que minúsculas: nanométricas, moleculares. A química e a física são as novas engenharias dessas máquinas mínimas. Aparentemente sólidas e tão suavemente tácteis elas doravante em nada lembram a pesada empunhadura do machado de sílex.
Do botão à tecla e desta ao ícone digital (e logo à voz, ao olho e quiçá ao pensamento) nossas bugigangas de efêmera elegância envelhecem tão rapidamente que suas carcaças obsoletas soterram a memória da graxa dos motores e do carvão que tisnava o rosto dos mineiros no alvorecer da Revolução Industrial. Tudo isso parece já pertencer a um passado remoto e longínquo. Todavia, apenas parece. Enquanto o homem tiver corpo, a máquina não morre nem se torna virtual. Ela somente se oculta, prolonga-se em próteses, protege-se em caixas e carenagens, aloja-se em compartimentos no ventre da urbe ou circula subterrânea por suas artérias tubulares. Ela enfim sobrevive na Casa das Máquinas, recinto de acesso restrito ao qual somos agora convidados por esse formidável livro de Guarnieri. Em poemas de sofisticado alcance rítmico e imagético, ele revela parte desse enigma das máquinas a nossos espíritos tão precariamente fascinados por mecanismos e automatizações, signos maiores da própria inconsciência nossa da cada dia. Afinal, é do paradoxos de uma robusta e delicada maquinaria da linguagem que Guarnieri nos fala. E como ela é blindada por um invólucro viscoso contra as investidas de decifração pela reflexividade, só mesmo à poesia ela porderia entreabrir-se assim, majestosa e circunspecta.
... E Mauro Gama:
(...) Guarnieri percorreu todas as trilhas de seus antecessores e informou sua compulsão expressiva com a tradição que o precedeu: com a tradição, esclarecemos, naquele sentido histórico e dinâmico em que Eliot insistiu e pelo qual sugeriu "a concepção da poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita". (...) Guarnieri trabalha sua linguagem com uma consciência integrada não propriamente de suas qualidades e resultados "literários", mas físicos e fisionômicos, indissociáveis do desenvolvimento interno e concreto, gráfico, de sua escrita.
(...) Guarnieri percorreu todas as trilhas de seus antecessores e informou sua compulsão expressiva com a tradição que o precedeu: com a tradição, esclarecemos, naquele sentido histórico e dinâmico em que Eliot insistiu e pelo qual sugeriu "a concepção da poesia como um todo vivo de toda a poesia já escrita". (...) Guarnieri trabalha sua linguagem com uma consciência integrada não propriamente de suas qualidades e resultados "literários", mas físicos e fisionômicos, indissociáveis do desenvolvimento interno e concreto, gráfico, de sua escrita.
Ao encerrar sua primeira coletânea, o poeta instala o leitor entre paredes a um tempo gráficas, fonológicas e semânticas sem saída, sem horizonte além do que, inquietantemente, pode estar sendo gerado na seção terrificante de "A ânima da máquina": sua esperença centrífuga é o desastre final, ou a energia libertadora? Há algo de esmagador e apocalíptico em seu "Blecaute". A propósito, não esqueçamos o Brecht capaz de nos ensinar, que " de um rio que tudo arrasta/ se diz que é violento,/ mas ninguém diz violentas/ as margens que o comprimentem". É como no texto de Guarnieri: ali se consubstancia, na recriação de um universao verbal, a maior violência dos nossos dias: a da perda de qualquer sentido das atividades humanas emocionalmente dissociadas e em condições de crescente confinamento.
Eis aí:
Casa das Máquinas terá lançamento no dia 08de novembro, no Centro Cultural Justiça Federal,às 18 horasAv.Rio Branco, 241 - Sala de Leitura da Biblioteca - 2º andar.
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oba!
ResponderExcluirParece ser muito bom!
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