13 de janeiro de 2013

UMA CARTA PARA ALCIR


Querido Alcir,
Há um mês deixaste este mundo de malucos. Eu não consegui escrever na hora, pra te louvar. Não deu, velho. Por que é que a gente chora? Em vez de ficar aliviada porque te livraste de um final ingrato, fico aqui, chorando por mim mesma. Tu já não estás.  E eu fiquei menos do que era. 
Mas como a minha convicção é maior que a tua, uma vez que não tinhas nenhuma acerca de depois da morte, quero te dizer que a Dilma deu prazo de mais três anos para a adoção  do acordo ortográfico. Tu sabes que esse acordo significa um retrocesso no aprendizado da linguagem já tão combalida. O que todos sabiam, deixam de saber, e os que aprenderem, com certeza o farão com mais dificuldade porque também o ensino fica mais difícil. Os acentos, ao contrário do que muitos pensam, servem muitíssimo para gravar uma grafia. Numa sociedade de imagem, por que combater os símbolos gráficos no idioma?
Ideia sem acento nunca será uma boa idéia. Ante-sala sem hífen e ainda por cima com dois ss não significa a espera. O hífen é o espaço da pausa. Como em auto-retrato é o espaço do ego.  Divagações. Minúcias, dirão alguns. Mas sei que para ti eram coisas essenciais. O idioma é essencial para a soberania, embora a noção de Nação também não esteja muito em moda. 
Portugal, tu sabes, não deu a mínima, pediu prazo maior, mas no Brasil logo acatamos as normas. Sem pensar, apenas por obedecer. Um mau costume de colonizados. 
Onde estão os grandes autores, os intelectuais, os filólogos, os  guardiões do idioma, não sei. Não me perguntes. Sei de um homem do meio que  se posicionou contra e foi despedido. Lobby forte. 
Imagina que a Globo comemora 30 anos de RJTV e sabes qual é a grande chamada? Filma eu. Filma nós. 

Tua dedicação, tuas idas constantes ao dicionário, tua busca pela clareza aprendidas com Houaiss resultam inúteis. Foco nos 100 anos de Rubem Braga, mas nada sobre a importância da linguagem.
Bem vês, meu caro amigo, a ignorância grassa. A burrice se alastra.

Outra notícia que te dou do Brasil, Planeta Terra, é de que a mídia está indignada com um caso de tortura na cadeia. Francamente, tortura nas cadeias? Que coisa absurda! 

De tortura tu entendes, né, Alcir? Mas tu és forte, és um touro nascido e criado em Rocha Miranda, suportaste a tortura na Barão de Mesquita 425 - A fábrica do medo. Mas quando te conheci não consegui te imaginar conspirando, fugindo da polícia da ditadura. Tu eras todo dedicado à vida.
Quando te conheci tudo já era passado, o Brasil respirava. Tinhas voltado do exílio, o Rio era novamente jovem e se despia das mortalhas, as moças passavam douradas e foi maravilhoso voltar a viver. Alcir e Lena, Lena e Alcir - uma lenda. 
Amor e literatura.


Os amigos seguem te amando.
Anna manda lembranças para ti e para Álvaro e se consola sabendo que tu, ele e o Sebastião devem se encontrar para contar intermináveis piadas de sacanagem. 
Sempre há questões a serem resolvidas. Mas não mais por ti, Alcir, não mais por ti. 
Estás gravado no cenário das praias intensas, do sol vermelho de verão, da linha curva do horizonte no mar de Ponta Negra, das vitórias do Vasco. Do amor, Alcir, do amor.



Alcir Henrique da Costa (1940-2012) - ativista, sociólogo, um dos fundadores do Grupo Tortura Nunca Mais, autor de Barão de Mesquita, 425, a fábrica do medo e do livro de contos Contramão.

...




5 comentários:

  1. Grande Alcir. Gigante pela própria natureza.

    ResponderExcluir
  2. Minha querida, não conheci Alcir, o que lamento. Só ser teu amigo já é recomendação bastante para me sentir frustrada por não tê-lo conhecido. A crônica está ótima. Dou-te razão total quanto à burrice da reforma ortográfica. Esses movimentos ridículos são pra jogar areia nos olhos das pessoas e desviá-las de olhar as coisas realmente importantes. Com tantas reformas fundamentais pedindo urgência...
    Sempre impliquei solenemente com Ante-sala sem hífen. Explicaste bem. A palavra na nova ortografia fica despida de seu simbolismo gráfico. Se algum dia tiver a chance de reeditar meu livro será à moda antiga e no meu título ninguém apita. Em qualquer circunstância mantenho-lhe o nome de batismo.

    Essa reforma ortográfica é demagógica e supérflua. Começa por não ter um critério de coerência etimológica e fonética. .(Vai é render muitas viagens e oportunidades para gramáticos passearem)

    O que separa a língua brasileira da portuguesa é de ordem fonética,e portanto está fora do reino da ortografia. Nunca houve problema nenhum na mútua leitura de textos do outro lado do oceano. Além disso, as telenovelas brasileiras se incumbiram de abrandar o fosso fonético entre as duas línguas. Que haja mais intercâmbio e os portugueses exportem também suas novelas e programas de TV.

    Um abraço
    Astrid Cabral

    ResponderExcluir
  3. Aí está,
    clamei aos céus e então chega um comentário assim, de quem entende do assunto.
    Astrid Cabral é não só uma grande autora
    também é conhecida como "a poesia em pessoa".

    lembro dos versos de Safo:

    quem é belo, é belo aos olhos e basta
    quem é bom
    é subitamente belo.

    O que dizer de Astrid, que é bela e permanentemente boa?

    ResponderExcluir
  4. Cara Helena.

    Esta mañana, tu carta a Alcir me emocionó y me disparó recuerdos que tenía olvidados. Conocí a Alcir en navidad, cuando todavía vivías en Ipanema. Me invitaste junto con Gabriel a saludar a un amigo a quien mucho apreciabas. Sé que caminamos unas pocas cuadras y subimos en ascensor hasta el apartamento de Alcir.
    No guardo memoria de su rostro ni de sus gestos, tengo una vaga sensación de haber estado ante un hombre bueno que reía. Eso es precisamente lo que recuerdo: su risa, su estado en libertad o en goce de la vida. Recuerdo también que estaba ahí su compañera, quien sirvió generosamente cerveza, salados. Había un ventana hacia la noche carioca, hacia una avenida amarilla por las luces de los coches;era un río amarillo y vertical.
    Hablamos con Alcir de la prisión y tuve el convencimiento de que todo lo había soportado con dignidad. Ignoro porque fue así, pero tuve esa idea.
    Ya sobre el final del encuentro me regaló dos libros:Contramao y Barao de Mesquita 425. En ese momento me dijiste: "Es muy buen escritor".

    Tu carta me hizo buscar esos libros en la biblioteca; ahora los tengo aquí en la mesa. Afuera, el calor asalta Montevideo y deja la calle está desierta.
    Repaso algunos cuentos que me gustaron mucho, releo los datos de la vida de Alcir que se suman a los de tu carta: militante, preso, exiliado, retornado a la patria.
    Me hubiera gustado hablar más con él, tomar cerveza en cualquier botiquín del Río hondo, sin turistas. Aunque tal vez esté bien este final que, en realidad, es un comienzo porque seguramente volveré sobre sus cuentos, sobre las palabras que tanto trabajaba por respeto y compromiso.
    LE digo adiós desde este sur del Río de la Plata, le digo adiós porque sé que saludo a un hermano del camino. Y te agradezco Helena haberme llevado aquella noche a conocerlo.
    Abrazo
    Miguel Motta

    ResponderExcluir
  5. Em Portugal as reacções têm grande amplitude porque aqui "o acordo" tomaria proporções dantescas. Se no Brasil a modificação seria qusse mínima,atingindo 0,4% do léxico, aqui, em Portugal, seriam dezenas e dezenas de milhares de palavras: a mudança que poderia chegar aos 4% (quando se muda a palavra afectar, por exemplo - que passaria a "afetar" - mudam-se, também, todas as formas do verbo...)
    A grande maioria dos portugueses (dos maiores intelectuais ao mais comum dos falantes - há petições assinadas por mais de 130 000 pessoas!) está contra este «acordo», que apenas subsiste ainda porque Portugal é intrinsecamente, autoritário.
    Esperemos que aí e aqui consigamos impor o bom senso.

    ResponderExcluir