12 de abril de 2010

UMA BOA NOTÍCIA


Quanto mais inabitável, mais o mundo fica povoado. (Mia Couto)


Volto a vocês como volto a mim mesma, procurando sempre entender, buscando na memória saber o quanto mudou e mudei. Sempre as mesmas perguntas sobre o sentido de estarmos vivendo. Esse é o mundo? O amigo me liga preocupado de Paris: a escravidão na Mauritânia. Existem outras, dissimuladas e aceitas. A raça é apenas uma pele?

Agradeço de pronto a quem quis saber de mim no momento em que o Rio de Janeiro sucumbiu tão rapidamente como nem num filme se acreditaria. Mas eu fui poupada dessa desgraça, de viver e ver a cidade entre águas turvas, lixo e cadáveres.
Temos governo? Não nos valem de nada, vocês sabem.
Da janela, nessa segunda-feira, vejo que as flores se aprumam, não estão nem aí com o destino das verbas.
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E e a boa notícia?
Pois seja: andei pelo sertão. Esperava encontrar a paisagem agreste que marcou Graciliano, mas encontrei a exuberância de Jorge de Lima. Os pastos estão verdes. As vaquinhas pastam em pequenos lagos, as cidades estão limpas, as estradas estão boas. O pau-de-arara, agora, voa.
Piranhas, a cidade de onde se parte para viajar pelo canyon de São Francisco está lá, toda pintadinha, linda como uma maquete. Dizem que é uma das mais pobres do Brasil. A Chesf também está lá. Mas a CHESF é a Vale de Itabira. Não está interessada na cidade. Os funcionários da Chesf moram em outras paragens. Não se juntam com o povo. Entre as duas margens corre o São Francisco, já ferido mas incansavelmente belo.
De qualquer forma, nada de esqueletos marcando o caminho do cangaço, embora os bandos sigam assaltando. Não existe mais o cangaceiro místico que povoou a história. Os de hoje têm armas modernas, chegam em caminhonetes poderosas e não acreditam em nada. O que não mudou foi o crime.
Arapiraca, Piranhas, Canindé, Jacaré dos Homens, Limoeiro da Anadia - tudo outros campos. E em Cruz das Almas há uma Universidade Federal. É pouco?
É o Brasil, e queiram ou não, a paisagem é outra, embora Maceió estivesse sediando um encontro pago sobre Os novos rumos da direita. Tem de tudo. Até a escravidão na Mauritânia.
Mas tem também a Micareta, bonita de se ver, diferente da micareta baiana. Um bando de gente jovem (porque a resistência é absolutamente necessária) surge de repente, dançando e cantando muito rápido, cantando muito, cantando alto, uma letra quase ininteligível para mim, mas o que importa? Ali a alegria, a humanidade, a tradição do canto passando por gerações. A juventude iluminando tudo, mas também os maduros, os velhos que um dia cantaram e puxaram os blocos.
A CHESF patrocina a micareta alagoana? Não, mas isso tem o lado bom. Quando há patrocínio a cultura já foi cooptada.
O Brasil é grande, e a força da arte é maior ainda.
e para saudar o sol, deixo-lhes aqui o os versos imortais de Jorge de Lima, alagoano de União dos Palmares, muito, muitíssimo menos conhecido do que Lampião e Maria Bonita.
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ETERNIDADE
Jorge de Lima
.
Ele reviu-se:
não era mais
nem corpo
nem sombra
nem escombros.
.
Como foi isso?
tudo irreal:
um barco
sem mar
a boiar.
.
Ele sentiu-se:
recomeçava.
Vivera
morrendo
numa estrela.
.
Ele despiu-se
de quê?
De tudo
que amara.
Surdo-mudo
cegara.
Agora vê.
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2 comentários:

  1. Muito lindo o poema, Helena, e tudo mais que escreves.
    Como foste de enchente ?
    Será que já não basta a encheção de saco da vida, tão sofrida pra levar.
    Torce pra mim, estou precisando.
    beijos e saudade

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  2. Olá Helena!
    Vem cá, mas quanto à escravidão na Mauritânia: foi um coadjuvante na conversa. O mote foi outro. Imagine se tivesse que ligar a cada calamidade humana que me deparasse, sem condições. (risos)
    Até outros telefonemas e/ou comentários no teu blog.
    Beijo.

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