Quando morre um poeta, a oração que faço é ir à sua poesia e estar com ela mais uma vez, nunca a derradeira. É um outro tipo de ritual, desejoso da presença do outro. É uma reza em que o leitor comunga do sentimento vivido pelo autor e, finalmente, dele libertado.
Dora Locatelli deslocou-se desse estado de ser vivente, para outro, que não conhecemos, mas que pressupomos, alguns de nós, que é apenas uma próxima etapa em que fatalmente nos veremos como somos e não como queremos ou parecemos. Talvez esteja no Bloco do Amor Demais, para o próximo Carnaval, quando encontrará os poetas recém partidos - quantos! Talvez esteja aqui em casa, com Luiza, Augusto, Rosane, Igor e Oliani. Talvez encontre Joana Maria, cujo santo de devoção era Antônio e que talvez abençoe essa conspiração e então leremos os nossos poemas mais fundos, de poetas para poetas, com o silêncio necessário, a respiração suspensa e a emoção em alta.
Uma mulher alta, Dora Locatelli. Uma bela mulher, culta, curiosa, de olhos transparentes, frágil. Morreu de amor, pelo que sei. O amor que a despertou um dia em Passa Quatro, nas Minas Gerais. O amor que a impeliu a estudar e depois ensinar Literatura. O amor que arrastou pela vida e sobreviveu na poesia.
A causa da morte é sempre técnica. A verdade é que a dor do amor negado não tem cura. Não pode ser percebida nos exames médicos.
O livro A RAIZ DO TAMBOR foi publicado em 2011, com prefácio de Igor Fagundes e texto de orelha de Mariel Reis. Dora estava feliz por fazê-lo na celebração dos seus 70 anos, apesar de
Conjunção alternativa
Ou sou eu mesma
e me isolo dos outros
ou me cedo a eles
e me afasto de mim.
O livro ficou bonito, com uma capa inspirada de Gabriel. Passamos várias vezes pelos poemas, conversávamos sobre eles. Num desses encontros em sua casa ela me presenteou com uma muda de jasmim. Não pude trazê-lo na mudança. Está lá em Piratininga, Niterói, perfumando um jardim por onde Dora jamais andou.
Dora era paixão ao extremo, sensível ao extremo, marcada ao extremo.
E um dia, de repente, foi-se. De repente? Não tanto. Já vinha dando sinais que nunca entendemos antes. Foi-se a poeta querida. Mas foram-se também a tristeza, os desacertos do corpo e uma delicadeza que chegava à complacência. Um coração atingido por flechas. Eis a imagem. Mas Dora sorri - encontrou o caminho dos tambores que a levaram à raiz da existência. Ficamos nós, na inquietação da nossa própria morte, sabendo que, ao fim, já é bom pensar nela como se chegada a hora de sonhar.
Deixo-os com a poesia, a melhor companhia, na vida ou para a morte.
SOBREVIVENTE
O fundo do poço
é tão fundo
tão profundo
que anestesia
põe em coma.
É fácil fechar os olhos
para dormir ou morrer.
E mais nada.
Ó sobreviventes,
"voi ch´entrate"
recuperastes na volta
vosso quinhão de esperança?
FOGO & FLEUMA
Eu te assustei com o alarido
de minha voz apaixonada
com os gritos despedaçados
exigindo tua presença
morna e sempre distante.
Quis acordar-te para o fogo
o relâmpago a tormenta
que sou eu-tempestade.
Mas teu mar de calmaria
jamais pôde entender a imensidão
de minha seiva rutilante clamando
pesada de tamanha ternura
escorrendo, feroz e corrosiva,
pelo tronco velho
de minha aparente fragilidade.
Teu desamor jamais suportaria
queimar-se neste fogo porque
desconheces a vertigem da entrega.
Escolheste o caminho da partida
submerso em fleuma e mornidão.
PONTO DE CRUZ
Quem é este animal
que uiva dentro de mim
neste começo de manhã?
É a loba pra lua
é a cachorra no cio
são as mãos sem a outra mão
o peito sem o abraço
a anêmona pulsando
perdida num mar sem fim.
É o eu estar só
ser um único ponto isolado
marcado em cruz
bem no meio do mapa
da vastidão deste planeta.
O mais são sombras
que passam ao longe.
Ao longe passam as caravanas: camelos voam apressados
para a venda de mercadorias
E só.
Na vastidão deste planeta
RIOCENTRO
A presteza
do calor do teu braço sem nome
no meu ombro
me salvando da desorientação
do caos de braços pés e pressa,
no sumidouro de um deus-me-acuda
me adoçou, me abriu o sorriso.
Me enrosquei
me enrodilhei em ninho
ali mesmo
no centro do Riocentro
no umbigo do mundo
no ovo.
Tua voz de macho e tabaco
- sons do esperma primordial -
descem em espiral por meus ouvidos.
Recebo o vento de teus acentos sulinos
e como a Virgem, te aceito
e outra vez concebo, extasiada.
UM CERTO AR DE MEDÉIA
Imóveis estão
todos os objetos
e a sala.
Num canto, ela,
estátua de sal
do choro de muitos anos.
No entanto, ela te espera, te espreita
atenta ao som de teus passos
quando as cortinas se abrirem.
A dor é tanta
que já nem sabe mais
se te abraça
ou estraçalha
com seu punhal de rubi
com seus dentes de jaguar.
DO CANSAÇO
O poeta popular
bem chegado ao Azevedo
das tênebras e tristezas
que hoje seria dark,
exauriu-se de amores.
Incapaz de paixão
só quer a paz
sinistra do caixão.
Sobram-lhe saberes e dissabores.
Não vê que na vida
a cada dia a cada passo
prazer e dor
se enlaçam no mesmo abraço
da mesma dança
mesma escritura.
Voraz, a vida
se nutre de paixão
e de loucura.
Veja mais sobre Dora Locatelli em
http://www.panoramadapalavra.com.br/poeta_da_vez72.asp
Dora Locatelli deslocou-se desse estado de ser vivente, para outro, que não conhecemos, mas que pressupomos, alguns de nós, que é apenas uma próxima etapa em que fatalmente nos veremos como somos e não como queremos ou parecemos. Talvez esteja no Bloco do Amor Demais, para o próximo Carnaval, quando encontrará os poetas recém partidos - quantos! Talvez esteja aqui em casa, com Luiza, Augusto, Rosane, Igor e Oliani. Talvez encontre Joana Maria, cujo santo de devoção era Antônio e que talvez abençoe essa conspiração e então leremos os nossos poemas mais fundos, de poetas para poetas, com o silêncio necessário, a respiração suspensa e a emoção em alta.
Uma mulher alta, Dora Locatelli. Uma bela mulher, culta, curiosa, de olhos transparentes, frágil. Morreu de amor, pelo que sei. O amor que a despertou um dia em Passa Quatro, nas Minas Gerais. O amor que a impeliu a estudar e depois ensinar Literatura. O amor que arrastou pela vida e sobreviveu na poesia.
A causa da morte é sempre técnica. A verdade é que a dor do amor negado não tem cura. Não pode ser percebida nos exames médicos.
O livro A RAIZ DO TAMBOR foi publicado em 2011, com prefácio de Igor Fagundes e texto de orelha de Mariel Reis. Dora estava feliz por fazê-lo na celebração dos seus 70 anos, apesar de
Conjunção alternativa
Ou sou eu mesma
e me isolo dos outros
ou me cedo a eles
e me afasto de mim.
O livro ficou bonito, com uma capa inspirada de Gabriel. Passamos várias vezes pelos poemas, conversávamos sobre eles. Num desses encontros em sua casa ela me presenteou com uma muda de jasmim. Não pude trazê-lo na mudança. Está lá em Piratininga, Niterói, perfumando um jardim por onde Dora jamais andou.
Dora era paixão ao extremo, sensível ao extremo, marcada ao extremo.
E um dia, de repente, foi-se. De repente? Não tanto. Já vinha dando sinais que nunca entendemos antes. Foi-se a poeta querida. Mas foram-se também a tristeza, os desacertos do corpo e uma delicadeza que chegava à complacência. Um coração atingido por flechas. Eis a imagem. Mas Dora sorri - encontrou o caminho dos tambores que a levaram à raiz da existência. Ficamos nós, na inquietação da nossa própria morte, sabendo que, ao fim, já é bom pensar nela como se chegada a hora de sonhar.
Deixo-os com a poesia, a melhor companhia, na vida ou para a morte.
SOBREVIVENTE
O fundo do poço
é tão fundo
tão profundo
que anestesia
põe em coma.
É fácil fechar os olhos
para dormir ou morrer.
E mais nada.
Ó sobreviventes,
"voi ch´entrate"
recuperastes na volta
vosso quinhão de esperança?
FOGO & FLEUMA
Eu te assustei com o alarido
de minha voz apaixonada
com os gritos despedaçados
exigindo tua presença
morna e sempre distante.
Quis acordar-te para o fogo
o relâmpago a tormenta
que sou eu-tempestade.
Mas teu mar de calmaria
jamais pôde entender a imensidão
de minha seiva rutilante clamando
pesada de tamanha ternura
escorrendo, feroz e corrosiva,
pelo tronco velho
de minha aparente fragilidade.
Teu desamor jamais suportaria
queimar-se neste fogo porque
desconheces a vertigem da entrega.
Escolheste o caminho da partida
submerso em fleuma e mornidão.
PONTO DE CRUZ
Quem é este animal
que uiva dentro de mim
neste começo de manhã?
É a loba pra lua
é a cachorra no cio
são as mãos sem a outra mão
o peito sem o abraço
a anêmona pulsando
perdida num mar sem fim.
É o eu estar só
ser um único ponto isolado
marcado em cruz
bem no meio do mapa
da vastidão deste planeta.
O mais são sombras
que passam ao longe.
Ao longe passam as caravanas: camelos voam apressados
para a venda de mercadorias
E só.
Na vastidão deste planeta
RIOCENTRO
A presteza
do calor do teu braço sem nome
no meu ombro
me salvando da desorientação
do caos de braços pés e pressa,
no sumidouro de um deus-me-acuda
me adoçou, me abriu o sorriso.
Me enrosquei
me enrodilhei em ninho
ali mesmo
no centro do Riocentro
no umbigo do mundo
no ovo.
Tua voz de macho e tabaco
- sons do esperma primordial -
descem em espiral por meus ouvidos.
Recebo o vento de teus acentos sulinos
e como a Virgem, te aceito
e outra vez concebo, extasiada.
UM CERTO AR DE MEDÉIA
Imóveis estão
todos os objetos
e a sala.
Num canto, ela,
estátua de sal
do choro de muitos anos.
No entanto, ela te espera, te espreita
atenta ao som de teus passos
quando as cortinas se abrirem.
A dor é tanta
que já nem sabe mais
se te abraça
ou estraçalha
com seu punhal de rubi
com seus dentes de jaguar.
DO CANSAÇO
O poeta popular
bem chegado ao Azevedo
das tênebras e tristezas
que hoje seria dark,
exauriu-se de amores.
Incapaz de paixão
só quer a paz
sinistra do caixão.
Sobram-lhe saberes e dissabores.
Não vê que na vida
a cada dia a cada passo
prazer e dor
se enlaçam no mesmo abraço
da mesma dança
mesma escritura.
Voraz, a vida
se nutre de paixão
e de loucura.
Veja mais sobre Dora Locatelli em
http://www.panoramadapalavra.com.br/poeta_da_vez72.asp
Amor, pois que é palavra essencial!
ResponderExcluirAgora o céu tá ficando mais azul...
E a gente menos cinza!
Helena!
ResponderExcluirGostaria de ter feito esse texto. Uma belíssima fotografia da nossa Dora, cunhada no que ela deixou em nossos encontros e em suas poesias, com tantos recados que muitas vezes nós talvez não tenhamos percebido. Um braço de náufrago a nos pedir socorro ou a se despedir.
Valeu, Helena.
Grande abraço,
Augusto Sérgio Bastos.
Muito delicada a tua homenagem Helena à Dora que era uma pessoa linda por completo. Que pena termos que acabar. Mas nossos poemas ficarão aí pelo ar.
ResponderExcluirMárcia Cavendish Wanderley
Helena, essa é a homenagem que todo poeta gostaria de receber. Dora se foi, mas sua lembrança e seus poemas ficaram.
ResponderExcluirNilzanira Reyes
Bela homenagem, Helena, bela.
ResponderExcluirJacinto Fabio Corrêa
lindíssima homenagem, sensíveis palavras, eu estava lá, junto com você, com igor, com augusto, com oliani, com luíza e outros tantos amigos queridos que amaram nossa dora e a sua poesia, estávamos lá quando ela sorriu de alguma graça, quando ela chorou emocionada, estávamos lá... e estreamos sempre com dora na nossa lembrança, Rosane
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