Rio de Janeiro, 7 de fevereiro 2015.
Oi Mãe,
Esta carta é para te mandar notícias no dia em que completarias 100 anos. E se tivesses conhecido de perto o tal de facebook verias que tuas filhas e netos estavam ligadas no mesmo pensamento e na mesma saudade.
Aqui a vida anda e eu mesma, a caçula, já estou velha. Nós, as tuas filhas, que já posamos na linha de frente das fotografias de família, agora estamos na última, a de espera. Mas vamos, enfrentando as agruras da velhice e a carga de desequilíbrios que o corpo denuncia. Antes fossem só os do corpo. Mas já temos idade para reconhecer os momentos em que a felicidade, rápida, nos ilumina e nos dá combustível para ir além.
Agora não preciso mais medir a gravidade das coisas que te conto. E nem mentir.
Eu não queria, mãe, eu nem sabia mentir direito, mas aprendi. O clamor das ruas me seduzia, o cinema, o teatro, os passeios que nunca fiz com a escola. E eu chorava mãe, quase o dia inteiro enquanto as colegas iam a lugares que eu não veria mais, sem qualquer experiência de uma outra vida que não fosse estar protegida.
Tu dizias que o pai não deixava. Mas sabias, como eu soube depois, que era por ti que passavam aqueles nãos, que ele respeitosamente também obedecia.
Não incomoda o teu pai. E o teu reino, a casa, era dedicado a ele. Acho que nunca pensaste se estavas certa ou se poderias ter errado em algumas coisas. Na família não se discutia sobre educação de crianças como hoje. Era do jeito que cada mãe achava que era. Mas a curiosidade me chamava às ruas e eu não podia deixar de ir. Tu não querias. Mas o teu reino era a casa. Do que vinha de fora pouco sabias, com tantos encargos da casa e das filhas, com irretocável dedicação ao pai - amor sem medida.
Lembro que a gente ria porque tinhas ciúme das freiras que iam à nossa casa no dia do aniversário dele com as órfãs do Asilo N.Sra.da Conceição e lá cantavam loas ao seu diretor, modestamente envaidecido.
Lembro que nunca na vida eu vi um beijo, um abraço, um afago que não fosse apenas simbólico. O carinho era embutido nas comidas, nos doces, na casa impecável, na lealdade irrestrita, e principalmente poupando o pai de qualquer malfeito nosso, (ou eram apenas meus?) e esmagando qualquer tentativa de descobrir por mim mesma as coisas além da casa.
Eu dei trabalho, sim, mãe. Me perdoa. Mas sei que a minha rebeldia aumentou por conta da repressão Sei que era porque naquela época eu ainda não podia sair para lugar nenhum sem um adulto, enquanto as moças da minha idade já andavam na garupa das motos.
Ter ficado em casa por tanto tempo por conta de tantos nãos, no entanto, me levou aos livros. Ali encontrei o amor enjoadinho dos romances para moças, mas depois, com um tempo absoluto e disponível, alcancei outros níveis de qualidade e posso dizer que os livros me salvaram.
Foi sempre difícil a nossa convivência. Mas as mães (agora eu sei) fazem sempre o seu possível pensando fazer o seu melhor. Mas que melhor é esse? E para quem?
Sinto a tua falta, mãe, principalmente do teu humor ácido e da tua expressão sapeca de quem diz o que quer e espera os efeitos. Esse humor substituiu, com vantagem, o efeito ameaçador do teu olhar com que nos imobilizavas em crianças.
Não sei exatamente como sentem minhas irmãs. Só posso falar por mim. Mas me despeço para não chorar mais. Não sou tão durona como pensavam, e com a idade os sentimentos vão chegando com lágrimas. Não sei se é porque não estás mais, ou se porque eu também já quase morri.
Talvez porque seja carnaval, e meu coração esteja muito, mas muito perto de explodir na maior felicidade.
A melhor novidade deixei para o final: Corinha, que não conheceste neste mundo, fará seis anos em março e Gabriel é um pai dedicado. Ele e Gisa são adeptos da liberdade que vem do brinquedo e da arte, e por isso posso te dizer que é grande a alegria do Sim.
da tua filha integrada e marginal, embora cada vez mais
desintegrada
Helena
Oi Mãe,
Esta carta é para te mandar notícias no dia em que completarias 100 anos. E se tivesses conhecido de perto o tal de facebook verias que tuas filhas e netos estavam ligadas no mesmo pensamento e na mesma saudade.
Aqui a vida anda e eu mesma, a caçula, já estou velha. Nós, as tuas filhas, que já posamos na linha de frente das fotografias de família, agora estamos na última, a de espera. Mas vamos, enfrentando as agruras da velhice e a carga de desequilíbrios que o corpo denuncia. Antes fossem só os do corpo. Mas já temos idade para reconhecer os momentos em que a felicidade, rápida, nos ilumina e nos dá combustível para ir além.
Agora não preciso mais medir a gravidade das coisas que te conto. E nem mentir.
Eu não queria, mãe, eu nem sabia mentir direito, mas aprendi. O clamor das ruas me seduzia, o cinema, o teatro, os passeios que nunca fiz com a escola. E eu chorava mãe, quase o dia inteiro enquanto as colegas iam a lugares que eu não veria mais, sem qualquer experiência de uma outra vida que não fosse estar protegida.
Tu dizias que o pai não deixava. Mas sabias, como eu soube depois, que era por ti que passavam aqueles nãos, que ele respeitosamente também obedecia.
Não incomoda o teu pai. E o teu reino, a casa, era dedicado a ele. Acho que nunca pensaste se estavas certa ou se poderias ter errado em algumas coisas. Na família não se discutia sobre educação de crianças como hoje. Era do jeito que cada mãe achava que era. Mas a curiosidade me chamava às ruas e eu não podia deixar de ir. Tu não querias. Mas o teu reino era a casa. Do que vinha de fora pouco sabias, com tantos encargos da casa e das filhas, com irretocável dedicação ao pai - amor sem medida.
Lembro que a gente ria porque tinhas ciúme das freiras que iam à nossa casa no dia do aniversário dele com as órfãs do Asilo N.Sra.da Conceição e lá cantavam loas ao seu diretor, modestamente envaidecido.
Lembro que nunca na vida eu vi um beijo, um abraço, um afago que não fosse apenas simbólico. O carinho era embutido nas comidas, nos doces, na casa impecável, na lealdade irrestrita, e principalmente poupando o pai de qualquer malfeito nosso, (ou eram apenas meus?) e esmagando qualquer tentativa de descobrir por mim mesma as coisas além da casa.
Eu dei trabalho, sim, mãe. Me perdoa. Mas sei que a minha rebeldia aumentou por conta da repressão Sei que era porque naquela época eu ainda não podia sair para lugar nenhum sem um adulto, enquanto as moças da minha idade já andavam na garupa das motos.
Ter ficado em casa por tanto tempo por conta de tantos nãos, no entanto, me levou aos livros. Ali encontrei o amor enjoadinho dos romances para moças, mas depois, com um tempo absoluto e disponível, alcancei outros níveis de qualidade e posso dizer que os livros me salvaram.
Foi sempre difícil a nossa convivência. Mas as mães (agora eu sei) fazem sempre o seu possível pensando fazer o seu melhor. Mas que melhor é esse? E para quem?
Sinto a tua falta, mãe, principalmente do teu humor ácido e da tua expressão sapeca de quem diz o que quer e espera os efeitos. Esse humor substituiu, com vantagem, o efeito ameaçador do teu olhar com que nos imobilizavas em crianças.
Não sei exatamente como sentem minhas irmãs. Só posso falar por mim. Mas me despeço para não chorar mais. Não sou tão durona como pensavam, e com a idade os sentimentos vão chegando com lágrimas. Não sei se é porque não estás mais, ou se porque eu também já quase morri.
Talvez porque seja carnaval, e meu coração esteja muito, mas muito perto de explodir na maior felicidade.
A melhor novidade deixei para o final: Corinha, que não conheceste neste mundo, fará seis anos em março e Gabriel é um pai dedicado. Ele e Gisa são adeptos da liberdade que vem do brinquedo e da arte, e por isso posso te dizer que é grande a alegria do Sim.
da tua filha integrada e marginal, embora cada vez mais
desintegrada
Helena
Esplêndida! essa carta arrancada do mais profundo de tua alma, Helena, só você para escrever palavras tão emocionantes e prenhes de saudade.
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