13 de maio de 2010

13 DE MAIO - POESIA E LIBERDADE

Vieira da Silva (1908-1992)

O dia de hoje não é pouca coisa para nós, brasileiros. Além da abolição da escravatura, que resultou em tanta esperança e até hoje não foi assimilada nem por brancos nem por negros, 13 de maio marca a data de nascimento de Raimundo Correia (1859), Lima Barreto (1881) e Murilo Mendes (1991).
É provável que nenhum deles mereça destaque dos suplementos culturais, que hoje sofrem de artificialismo agudo, mas sempre há quem lembre, orgulhe-se e, mais importante, vá, como se rezasse, aos livros dos escritores mais amados.
Quem sabe, sabe. Quem não sabe... ao Google e descubra que essas três importantes estrelas brilham ainda no tal céu do Brasil, que felizmente é pródigo em artistas, para equilibrar com os outros, os que mandam contra.
De Raimundo Correia vai um dos seus mais conhecidos poemas, que povoou o Tesouro da Juventude e as seletas. E como é atual!

Mal secreto



Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!


De Murilo Mendes, do livro Poesia Liberdade, Os Pobres, que já foi capa do panorama, com ilustração de Maria Helena Vieira da Silva.

Os pobres

Chegam nus, chegam famintos,
À grade dos nossos olhos,
Expulsos da tempestade de fogo
Chegam de qualquer parte do mundo,
Ancoram na nossa inércia.

Precisam de olhos novos, de outras mãos.
Precisam de arados e sapatos,
De lanternas e bandas de música,
Da visão da licorne
E da comunidade com Jesus.

Os pobres nus e famintos
Nós os fizemos assim.


De Lima Barreto, que nasceu negro em 13 de maio, ofereço-lhes


Carta de um pai de família ao doutor Chefe de Polícia.


Senhor doutor chefe de Polícia. Permita vossa excelência que um velho chefe de família, pai de três filhas moças e dois rapazes, se dirija a vossa excelência, no intuito de esclarecer o espírito de vossa excelência que parece só ver as coisas por uma face só.

Moro, excelentíssimo doutor, há quase trinta anos na Rua Joaquim Silva, aí nas fraldas de Santa Teresa, rua plácida, sossegada, que vossa excelência talvez não conheça como bom chefe de polícia que é do Rio de Janeiro, mas natural da Bahia.

Não digo tal coisa para censurar vossa excelência, mas simplesmente para lembrar que os antigos chefes de polícia da minha leal e heróica cidade conheciam todos os seus meandros, becos, bibocas, etc. Os antecessores de vossa excelência, como o Vidigal, o dos granadeiros, e o Aragão, o do sino de recolher honestas, conheciam o Rio como qualquer malandro; mas, desde que inventaram a polícia científica, por sinal que fez aumentar os crimes misteriosos, desde en­tão, dizia eu, os chefes ficaram dispensados de conhecer o Rio de Janeiro, inclusive vossa excelência.

Moro, ia dizendo, na Rua Joaquim Silva há mais de vinte anos, com minha família, em casa própria, que foi a do pai de minha mulher e é agora nossa. Confesso a vossa excelência que me casei, contando (é preciso não esquecer a mulher) com a casa, pois naquele tempo era amanuense e sem a casa não poderia constituir família. De uma casa dessas, boa, sólida, ampla, arejada, cheia de recordações de família, a gente, há de concordar vossa excelência, não se muda assim. Ela faz parte da família, se não é a própria família. vossa excelência que é lido em direito, será certamente lido em sociólogos e sabe perfeitamente que quase todos cogitam na posse normal do domicílio familiar, coisa que consegui graças à minha prudência e às economias do madeireiro português, pai da minha mulher. Não posso, nem me devo mudar, isto diante de todas as leis que não são votadas pelo congresso.

Acontece excelência, que de uns dias a esta parte vie­ram para a minha vizinhança umas "moças"que não são bem parecidas com as minhas filhas nem com as primas delas. Eu conheço mal essas coisas da vida do Rio, e nem por isso quero ser chefe de polícia; e andei indagando de que pessoas se tratava e soube que eram "meninas", moradoras nas ruas novas, que a polícia estava tocando de lá, por causa das fa­mílias.

Mas, doutor, eu não tenho também família? Porque é que só as famílias daquelas ruas não podem ter semelhante vizinhança e eu posso?

"Doutor: eu não tenho nenhuma ojeriza a essas "senhoras", embora nunca me tivesse metido nessas coisas. Casei-me cedo e tenho sempre labutado para a família, desde amanuense até agora que sou chefe de seção; mas não compreendo que a polícia e a justiça persigam certos entes por crime que não está em lei. De resto, se há crime, há pena e a pena não pode ser essa de domicílio coacto ou de interdição de residência que não estão no Código.

A polícia na lei conhece ladrão, gatuno, cáften, assas­sino, mas não conhece semelhantes senhoras.

Não quero discutir com vossa excelência tais coisas. Sei que vossa excelência é o doctor angelicus das escolas da Bahia; mas falo sempre como Sancho Pança e julgo como ele na ilha da Baratária.

Se as famílias da Rua Mem de Sá, não podem ter por vizinhas tais "meninas", muito menos as da Rua Joaquim Silva.

Demais, quando se fez a referida avenida, elas logo tomaram lugar. Há a favor delas o tal uti possidetis, o que não acontece com a minha triste rua. Vossa excelência deve meditar bem sobre o assunto, para não classificar as famílias da Rua Joaquim Silva abaixo das de Mem de Sá. Não há hierarquia familiar na nossa sociedade. Não é doutor? De vossa excelência etc. Augusto Soromenho Albernaz, chefe de seção da Secretaria do Fomento.

"P. S. - Quando acabava de escrever esta a vossa excelência vieram oferecer-me 500$000 de aluguel pela minha casa. Está aí em que deu o ato de vossa excelência: valo­rizou as casas da Rua Joaquim Silva e naturalmente desva­lorizou as da Avenida Mem de Sá. Não aceitei e espero que os tribunais superiores dêem a todos o direito de morar onde bem lhes parecer conveniente. O mesmo".

Conforme o original.

Careta, Rio, 24-4-1915


Viram só? 1945. Estamos em 2010 e poderíamos mandar a carta para o prefeito Eduardo Paes.

Ele entenderia? Não sabemos. Fiquemos com outro poema de Murilo Mendes porque eu, como todo o mundo, sou parcial e tenho minhas preferências.


O sono


Dorme.

Dorme o tempo em que não podias dormir.

Dorme não só tu,

Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo.

Dorme o que não foste e o que não serás.

Dorme o incêndio dos atos esquecidos,

A qualidade, a distância e o rumo do pensamento.


O pássaro volta-se,

As árvores trocam os braços,

Os castelos param de andar.


Dorme.

Que pena não poder me ver - puro - dormindo !


...

Um comentário:

  1. conheci recentemente murilo mendes. e mais recentemente ainda li o "poesia liberdade".

    bom nos embrenhar na marginalização de nossa própria cultura e descobrir artistas ainda velados!

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