14 de maio de 2010

PAI - 14 DE MAIO



Escrito assim, tão curtinho, parece pouco: pai.

Não tenho pai há muito mais tempo do que não tenho mãe. Foi quando saí de casa que passei a olhar minha mãe como mulher. Meu temperamento rebelde se insurgia contra a condição da mulher na sociedade em que eu vivia desde aquela época, e que na minha família era ainda mais rígida. Era uma aversão institntiva. Eu não sabia nada de lutas. A mãe era o escudeiro do pai, mas era quem mandava em nós.

Lembro que quando as moças começaram a usar calças compridas, que naquele tempo se chamavam slacks, eu tinha que sair com a calça na bolsa e trocar em outro lugar. Dava um trabalhão. Tudo porque o pai não deixava. Por que? Não ficava bem, e pronto. Mas a ordem não vinha dele, vinha dela. Tudo para poupá-lo.

E o cigarro? (e era o careta!) que mão-de obra. Fumar escondido, e depois ter que disfarçar o cheiro. Talco no banheiro, o vapor do banho de horas, onde guardar os cigarros? Ter ou não ter fósforos? As irmãs de olho. Viajar de trem e esperar a noite para fumar não um, mas vários cigarros e me sentir a Anouk Aimmé. Na estação me esperava Yves Montand. Fumaça nos outros? Nem se falava nisso. O importante era o glamour. E esconder a pílula? Ó Deus. O que era pior: o cigarro ou a pílula? Minha irmã dizia: Vais matar o pai. Matei-o de desgosto ou ele tinha outras tristezas que nunca soubemos? Haveria um prego na porta?

Meu pai tinha a palavra delicada e nobre. E duvido que algo lhe interessasse mais do que a política. Mas a ordem era passada por minha mãe. Uma mulher precisava educar bem os filhos. E educar era reprimir.

As festinhas. E então as bebidas, cuba-libre, gin fizz, hi fi. Bebidas de mulheres. As mulheres não gostavam muito de cerveja, embora tomassem. Há muitas coisas de que a mulheres não gostam mas acabam se rendendo pelo gosto do homem.

Não fui uma filha obediente. Fui mal comportada e criei, digamos, alguns problemas. Hoje chamaríamos de inadaptação. Mas eu tinha que mentir, mãe. Lá fora estava tudo acontecendo. Não dava pra ficar em casa, né mãe? Então eu mentia, e quanto! Mas só quando cansei de ficar sempre em casa, enquanto todo o mundo saía, nem que fosse para excursão de colégio. Eu não, eu nunca. E chorava em cima da cama.

Foi por causa disso, mãe. Tu não foste moça na época em que eu estava sendo. Daí a incompatibilidade. Mas eu sei que não eras tu. Eras apenas a esposa do pai. Quem tu eras mesmo estava nos pratos, nos doces, nos pudins, naquele famoso, de chocolate, em camadas, com creme de baunilha, merengue batido à mão, e no cume, maravilhando, o morango, mãe, o morango de Pelotas.

Espero que estejas aí, com o pai, sei que amor havia; que ambos estejam mais relaxados, sem ter que educar ninguém. E olhem por mim, que não tenho pai nem mãe, sou avó e filha de mim mesma e nem sei fazer pudim. Por Gabriel e Gisa, os filhos de hoje, também pais. E por Corinha , que um dia já fomos e um dia nos será.


...

7 comentários:

  1. Amamos o que escrevestes! Tens esta foto para nos mandar por mail? Um beijão Ana Lúcia

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  2. Nossa! Lindo. Mais um daqueles que deixa o olho gotejar.

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  3. "...os filhos de hoje". E como esses filhos descreverão em breve "as mães de hoje". Esconder a pílula já não é problema (ainda bem!). Pelo menos em alguns casos. Minha filha não poderá falar dos meus pudins, pois ele nunca existiu - sequer um bolinho de fubá. Falará provavelmente de como foi difícil educar sua mãe... rs.

    Obrigada pela visita e pelas palavras.

    P.S. Também tenho um sobre mãe. Ei-lo http://msgibson-eg.blogspot.com/2010/01/mae.html

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  4. mais um dos teus escritos sem par, pois escreves comovida (como vida vivida em plenitude) grata por esse grande prazer de te ler

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  5. Que texto mais lindo!...

    Obrigada por dividi-lo conosco.

    Bjs e inté!

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  6. Fiquei muito tempo sem ler você. Desculpe. Tirei o dia pra me deliciar com os teus "quitutes literários". Diante desse,difícil silenciar. Difícil comentar. Me resta ler e reler e reler e
    Beijo saudoso.
    Elida

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