18 de junho de 2010

LUTO EM VERMELHO


A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.
Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.
Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.
Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.
Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.
E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos". Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.
...

7 comentários:

  1. HELENA,

    SE ELVIS NÃO MORREU, PORQUE SARAMAGO ESTARIA MORTO?

    SARAMAGO É IMORTAL.

    NÃO CONHECIA O SEU BLOG.

    ACHEI REALMENTE, MUITO INTERESSANTE E TENHA A CERTEZA DE QUE VOLTAREI SEMPRE AQUI.

    TAMBÉM, APROVEITO PARA CONVIDAR VOCÊ A CONHECER O MEU BLOG:

    “HUMOR EM TEXTO”.

    A CRÔNICA DESTA SEMANA NOS ALERTA SOBRE OS RELACIONAMENTOS HUMANOS DISSIMULADOS E ENGANOSOS.

    SE PUDER, CONFIRA E SE QUISER COMENTE, POIS LÁ O MAIS IMPORTANTE É O SEU COMENTÁRIO.

    UM ABRAÇÃO CARIOCA!

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  2. Oi Helena, postei o artigo no blog cometaon.blogspot.com e compatilhei no facebook: no Mzrcelo Procopio (é com z mesmo, errei e deixei assim)
    Muito bom, mas muito bom mesmo. Pilar ia gostar tanto como nós.

    beijos,
    Marcelo Procopio
    O Cometa Itabirano

    Ah, publiquei seu texto sobre o cometa no cometa. Depois envio. Para Cristina Silveira tambem, claro, se não ela me mata. hehe

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  3. Helena,neste instante chove aqui em Recife e em meu coração... Sinto imensamente a perda do nosso imensurável Saramago.
    Sua voz silenciou, mas suas palavras ecoarão para sempre.

    Um grande abraço,

    Cecília Villanova.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Querida Helena, um presente para você, se ainda não conhece vai apreciar: http://www.youtube.com/watch?v=Fq3h_K8PL_g

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  6. Comungo, triste demais, com o sentimento de luto. Mas acredito que, hoje, tendo feito as honras da casa, Lélia Coelho Frota, Carlos Drummond, Murilo Mendes e outros demiurgos, vão recebendo josé Saramago, generosos, no fôlego maior de suas ideias. Quiçá possam soprar em toda parte, livres para todos, pólen de fecundidade, salvando o que de humano, ainda (!), existe em nós! Parabéns, Helena, pelo belíssimo texto! Léa Madureira Lima.

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