Venho
do Leblon numa hora possível, em que os carros não se apossaram avidamente das
ruas e não afastam a todos com seu poder de fumaça. Fui levar um exame ao
médico. Achei vaga. Tudo correu bem. Já estou voltando, descendo o Cosme Velho
quando ouço no rádio a informação de que o Sesc prorrogou o prazo para concursos literários.
Eu, que nem sabia que havia concurso, me interessei. Há pouco tinha ouvido
Vanessa da Mata cantando Boa-sorte. Por que não?
Já em
casa procurei o regulamento. Várias possibilidades. Conto, crônica, poesia. Fui no de crônicas, que é a minha fase de agora. Prêmio
Sesc de Crônicas Rubem Braga. De início, era apenas um regulamento a mais. Na
participação eu me enquadrava. Duas
crônicas inéditas eu não tinha, mas poderia escrever. O tema: livre, porém as crônicas “deveriam
conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”. Deveriam?
Prossegui
na leitura. Preenchimento da inscrição determinando especificações: Word, fonte
Times New Roman, tamanho 12, espaçamento duplo e alinhamento justificado.
Fiquei
pensando na mão de Rubem Braga escrevendo suas crônicas eternas; em Drummond e
Clarice escrevendo suas colunas, sem que ninguém sequer ousasse dizer sobre o que escreveriam; em
João do Rio, sem o peso da formatação, em Sérgio Porto, seriíssimo, ou Veríssimo, filosófico; em Marilene Felinto, resistente - todos dando vazão à liberdade de pensamento, fiéis ao talento e à
própria consciência.
A seleção, informa o regulamento, será feita por comissão composta por membros de notório conhecimento no campo literário. Ah, bom, isso me tranquiliza. Mas terá a comissão lido o regulamento? Saberão os seus membros que o tema é livre, mas a mensagem é determinada? Saberão que o ineditismo que o concurso exige significa a morte daquela pequena obra, daquele impulso que nasce por um dia, e como uma flor, morre ao entardecer?
O prêmio (ou a sentença?) não termina aí. Também tira do cronista os direitos autorais, com firma reconhecida em cartório e, para terminar, informa que os pobres prêmios em dinheiro, no valor de 2 mil, 1,5 e mil reais, para 1º, 2º e 3º colocados serão pagos em bruto, e deles serão deduzidos “os impostos em vigor”.
Primeiro pensei em escrever e mandar a crônica que publico agora. Pelo menos seria lida por alguém. Pelo primeiro que a lesse, quem sabe, que logo a descartaria. Depois pensei na firma reconhecida, no correio, e principalmente na rendição.
Não, não seria eu a trair a crônica, imortalizada por tantos escritores geniais. Não seria eu, mesmo cronista menor, a conspurcar o gênero, a vender-me ao vendê-la aos “guardiões da cultura”. Não mesmo.
Aqui está ela, a quem me abraço. Digo-lhe que não me entregarei, que a amarei sempre e que já sei reconhecer, pelos termos, pela pompa, pela desfaçatez, os inimigos da literatura. Digo-lhe que será como quiser, em Trebuchet 14, espaçamento 1,5, alinhamento à esquerda. O título irá à esquerda, e não no centro. Sim, como queira. Farei exatamente como queira.
Sem negrito no título, está bem.
E a sorte é sua, leitor solidário, se não escrevo, como o SESC permite, uma crônica de oito páginas. Oito páginas para uma crônica?
Felizmente, a comissão é de notório saber.
Posso dormir, então.
A bênção, Quintana, a bênção, Millôr, a bênção Machado de Assis, a bênção Vinicius e todos os cronistas do Brasil, que fizeram esse samba comigo.
...
Posso dormir, então.
A bênção, Quintana, a bênção, Millôr, a bênção Machado de Assis, a bênção Vinicius e todos os cronistas do Brasil, que fizeram esse samba comigo.
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Ah, essa ironia tão explícita que machuca qualquer "comissão composta por membros de notório conhecimento literário"!
ResponderExcluirPara mim, você já é uma cronista pronta, apenas esperando ser descoberta e conquistar seu lugar ao sol. Não tem que perder seu tempo submetendo-se a esses concursos oficialescos que não conduzem a nada, nem mesmo promovem a revelação de qualquer um dos vencedores.
Para que expor teu brilhante currículo, tua gana de batalhadora desde os tempos da Gazeta Pelotense...
Helena
ResponderExcluirEssa tua crõnica - agora não mais inédita e, portanto, já "desclassificada" - para mim, já ganhou!!!
Um beijo grande e saudoso!
Vaz
Amiga, vieste ao Leblon e não se lembrou de mim...
ResponderExcluirque pena. Podíamos conversar sobre nós e sobre esses dias tão imperiais e sem criatividade. Adorei a crônica. Não fosse o correio, cartório e outros desgastes, valeria o recado. Bjs .Elida
Helena Integrada e Marginal!
ResponderExcluirTambém gostei.
Hoje desci o Chiado, em Lisboa, a lembrar-me da sua poesia inspirada, com vários livros debaixo do braço comprados por apenas 5 euros nos alfarrabistas. Paguei 12 de estacionamento do carro no parque dos Restauradores.
Um abraço do
Joaquim Emídio
Já está pronta e vencedora!!!!! a benção Helena
ResponderExcluira benção helena. minha luz literária.
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