19 de outubro de 2013

UMA CRÔNICA EM CRISE

Venho do Leblon numa hora possível, em que os carros não se apossaram avidamente das ruas e não afastam a todos com seu poder de fumaça. Fui levar um exame ao médico. Achei vaga. Tudo correu bem. Já estou voltando, descendo o Cosme Velho quando ouço no rádio a informação de que o Sesc prorrogou o prazo para concursos literários. Eu, que nem sabia que havia concurso, me interessei. Há pouco tinha ouvido Vanessa da Mata cantando Boa-sorte. Por que não?
Já em casa procurei o regulamento. Várias possibilidades. Conto, crônica, poesia. Fui no de crônicas, que é a minha fase de agora. Prêmio Sesc de Crônicas Rubem Braga. De início, era apenas um regulamento a mais. Na participação eu me enquadrava.  Duas crônicas inéditas eu não tinha, mas poderia escrever. O tema: livre, porém as crônicas “deveriam conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”.  Deveriam?  
Prossegui na leitura. Preenchimento da inscrição determinando especificações: Word, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento duplo e alinhamento justificado.
Fiquei pensando na mão de Rubem Braga escrevendo suas crônicas eternas; em Drummond e Clarice escrevendo suas colunas, sem que ninguém sequer ousasse dizer sobre o que escreveriam; em João do Rio, sem o peso da formatação, em Sérgio Porto, seriíssimo, ou Veríssimo, filosófico; em Marilene Felinto, resistente - todos dando vazão à liberdade de pensamento, fiéis ao talento e à própria consciência.

A seleção, informa o regulamento, será feita por comissão composta por membros de notório conhecimento no campo literário. Ah, bom, isso me tranquiliza. Mas terá a comissão lido o regulamento? Saberão os seus membros que o tema é livre, mas a mensagem é determinada? Saberão que o ineditismo que o concurso exige significa a morte daquela pequena obra, daquele impulso que nasce por um dia, e como uma flor, morre ao entardecer?

O prêmio (ou a sentença?) não termina aí. Também tira do cronista os direitos autorais, com firma reconhecida em cartório e, para terminar, informa que os pobres prêmios em dinheiro, no valor de 2 mil, 1,5 e mil reais, para 1º, 2º e 3º colocados serão pagos em bruto, e deles serão deduzidos “os impostos em vigor”.

Primeiro pensei em escrever e mandar a crônica que publico agora. Pelo menos seria lida por alguém. Pelo primeiro que a lesse, quem sabe, que logo a descartaria. Depois pensei na firma reconhecida, no correio, e principalmente na rendição. 

Não, não seria eu a trair a crônica, imortalizada por tantos escritores geniais. Não seria eu, mesmo cronista menor, a conspurcar o gênero, a vender-me ao vendê-la aos “guardiões da cultura”. Não mesmo.

Aqui está ela, a quem me abraço. Digo-lhe que não me entregarei, que a amarei sempre e que já sei reconhecer, pelos termos, pela pompa, pela desfaçatez, os inimigos da literatura. Digo-lhe que será como quiser, em Trebuchet 14, espaçamento 1,5, alinhamento à esquerda. O título irá à esquerda, e não no centro. Sim, como queira. Farei exatamente como queira.
Sem negrito no título, está bem.


Agora explodem bombas. As notícias me soterram. Espero ter contribuído com alguns “elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”. 
E a sorte é sua, leitor solidário, se não escrevo, como o SESC permite, uma crônica de oito páginas. Oito páginas para uma crônica?


Felizmente, a comissão é de notório saber. 
Posso dormir, então. 
A bênção, Quintana, a bênção, Millôr, a bênção Machado de Assis, a bênção Vinicius e todos os cronistas do Brasil, que fizeram esse samba comigo.

...


6 comentários:

  1. Ah, essa ironia tão explícita que machuca qualquer "comissão composta por membros de notório conhecimento literário"!
    Para mim, você já é uma cronista pronta, apenas esperando ser descoberta e conquistar seu lugar ao sol. Não tem que perder seu tempo submetendo-se a esses concursos oficialescos que não conduzem a nada, nem mesmo promovem a revelação de qualquer um dos vencedores.
    Para que expor teu brilhante currículo, tua gana de batalhadora desde os tempos da Gazeta Pelotense...

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  2. Helena
    Essa tua crõnica - agora não mais inédita e, portanto, já "desclassificada" - para mim, já ganhou!!!
    Um beijo grande e saudoso!
    Vaz

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  3. Amiga, vieste ao Leblon e não se lembrou de mim...
    que pena. Podíamos conversar sobre nós e sobre esses dias tão imperiais e sem criatividade. Adorei a crônica. Não fosse o correio, cartório e outros desgastes, valeria o recado. Bjs .Elida

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  4. Helena Integrada e Marginal!
    Também gostei.
    Hoje desci o Chiado, em Lisboa, a lembrar-me da sua poesia inspirada, com vários livros debaixo do braço comprados por apenas 5 euros nos alfarrabistas. Paguei 12 de estacionamento do carro no parque dos Restauradores.
    Um abraço do
    Joaquim Emídio

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  5. Já está pronta e vencedora!!!!! a benção Helena

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